Na data em que se comemora o Dia Nacional da Visibilidade Trans, 29 de janeiro, a Agência CNJ de Notícias conta a história de três funcionários do Poder Judiciário que representam o reconhecimento da diversidade de gênero como direito fundamental e demonstram que a convivência com o diferente não precisa causar desconfiança, revolta ou tristeza. A Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a transexualidade da Classificação Internacional de Doenças. A medida é importante golpe no preconceito que atinge essas pessoas e pode vir a ajudar no fomento de políticas públicas dessa população.
Apesar das muitas experiências de preconceito e intolerância pelas quais as pessoas trans confidenciam passar, os trabalhadores da Justiça Victor, Luciano e Pietra relatam nova realidade: a de não terem vivido situações de violência por conta de seus gêneros ou de suas características físicas. Nem em família nem com a vizinhança, nem mesmo no ambiente de trabalho.
E foi justamente perante os colegas de trabalho e familiares que o servidor do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (São Paulo) Victor Visacre foi mudando fisicamente, ao longo do tempo, por meio da transição hormonal. Ele conta que encarar sua inadequação com o gênero de nascimento foi o maior desafio.
“A gente passa por uma discriminação muito grande dentro da gente; a primeira grande superação é interna”, diz o servidor que, desde a infância, nunca se identificou como Débora, seu nome de batismo. Não usou saia ou vestido nem brincou de boneca. Mas não havia, ainda, uma ideia clara sobre o que lhe ocorria. Ele recorda ter vivido a juventude em uma época em que não se falava sobre isso e não teve acesso a pessoas que lhe servissem de inspiração.
Victor viveu na pele de uma mulher por 48 anos, quando finalmente decidiu abraçar a transição. O lento processo, conta, lhe fez bem. “Deu tempo de me conhecer melhor e de me sentir seguro de quem realmente eu sou”. Depois de se reconhecer, entrou com um processo de mudança do registro civil e, hoje, socialmente, já é tratado como homem em todas as esferas.
Política do CNJ
Desde 2018, o prefixo “trans” – de transformação, transição, transgênero – tem sido sinônimo de renascimento e reconhecimento social para os brasileiros e brasileiras que trabalham nos tribunais brasileiros. Foi por meio da Resolução n. 270/2018 que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assegurou a possibilidade de uso do nome social às pessoas trans, travestis e transexuais usuárias dos serviços judiciários, a magistrados, estagiários, servidores e trabalhadores terceirizados do Judiciário em seus registros funcionais, sistemas e documentos.
“No âmbito da Justiça, o CNJ atua na efetivação dos direitos das pessoas vulneráveis, em que se incluem as pessoas trans e LGBTQIAPN+, estabelecendo políticas públicas que promovam a conscientização da sociedade acerca das questões de gênero e diversidade, combatendo o preconceito, a fim de que, com a aceitação das diferenças, as pessoas possam viver de maneira mais íntegra suas próprias vidas”, diz a coordenadora do Observatório de Direitos Humanos do CNJ, desembargadora Carmen Gonzalez.
A norma também determina que agentes públicos respeitem a identidade de gênero e tratem a pessoa pelo prenome indicado nas audiências e em todos os atos processuais. Pietra é um caso diferente: ela não liga se for chamada por Maurício. “Sou travesti. Diferente das mulheres trans, não vivo todo o tempo como mulher. Acho que por isso não sinto necessidade de trocar de nome”, afirma.
Questionada sobre a importância de a Justiça garantir esse direito, Pietra defende: “É fundamental e muda muita coisa, principalmente para as pessoas trans. Dá segurança, dá garantia de um tratamento respeitoso. É um avanço, né? Não deve parar por aí. A gente precisa de garantias no mercado de trabalho, por exemplo. Conheço colegas que foram atrás de uma vaga de emprego e quando o RH viu que ela era trans disse que a vaga tinha sido preenchida”, conta a trabalhadora terceirizada de 32 anos que se autointitula travesti e que, à frente da recepção do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT), veste uniforme masculino, mas não deixa de manter suas unhas grandes, usar batom vermelho e deixa à mostra seus longos cabelos coloridos.
Abandono escolar
Assim como Pietra e Victor, o servidor da Justiça Luciano também reconhece a dificuldade por que muitos de seus pares passam. “Sei de muitos relatos de vagas que somem. Acredito que, por ser servidor, fico menos exposto ao bel sabor do empregador”, diz. Alocado no Laboratório de Inovação e membro da Comissão da Diversidade do TJMA, o servidor de 40 anos de idade diz que o país ainda precisa percorrer importantes e necessários caminhos para alcançar a equidade de gênero.
Luciano defende fortemente a garantia dos direitos das pessoas trans, assim como uma política efetiva de construção de cidadania para eles. “Somos cidadãos iguais a todos os outros, pagamos os impostos como qualquer pessoa. E não temos conseguido manter os jovens trans nas escolas. Uma questão urgente, de ensino de respeito dentro da sala de aula”, defende.
Ele reforça que muitos trans abandonam o colégio porque são discriminados, o que gera impacto terrível nessas vidas pois, sem formação, muitos jovens acabam sendo empurrados para a prostituição, já que, além de não conseguirem uma experiência laboral tradicional, não raro precisam sair de casa cedo, pois também não são aceitos pela família.
Segundo Luciano, outro desafio precisa estar na mira das políticas de Estado: a saúde das pessoas trans. “A maioria dos endocrinologistas não sabe como atender essa população. Fui a quatro profissionais antes de encontrar um especialista que soubesse lidar com meu corpo. E eram bons especialistas, mas, mesmo assim, quase morri devido à inexperiência de profissionais que desconhecem essa área”, relatou.
O servidor da Justiça maranhense também cita a saúde mental como preocupação crucial. “Estar nesse lugar é extremamente difícil. Quantos de nós não tiram a própria vida por se sentirem completamente sós, desamparados”. Em 2018, a revista The Lancet apresentou uma série de pesquisas sobre pessoas transgêneros, que revelou um dado chocante: aproximadamente 60% dessa população sofrem de depressão.
Justiça garante direitos
Em 2017, começou a valer o decreto presidencial que aprovou a adoção do nome social da pessoa travesti ou transexual, se expresso pelo interessado, em documentos oficiais e nos registros de informação, programas, prontuários e outros, das entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
No ano seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a possibilidade de ratificação em documentos oficiais, por via administrativa, sem a necessidade de laudo médico, psicológico ou de cirurgia de redesignação sexual. A medida determina que haja o campo nome social em qualquer documento de identificação, formulários, matrículas, registros de frequência e similares. Além do nome social, também é garantido o direito de utilização de espaços públicos, como banheiros, de acordo com o gênero que a pessoa se identifica. No mesmo ano, o CNJ determinou esse direito aos usuários dos serviços judiciários, membros, servidores, estagiários e trabalhadores terceirizados dos tribunais brasileiros.
Mais visibilidade, mais reconhecimento
O Dia da Visibilidade Trans foi escolhido para ser comemorado em 29 de janeiro a partir de um evento ocorrido na mesma data no ano de 2004. Naquele dia, travestis e transexuais foram ao Congresso Nacional para o lançamento da campanha “Travesti Respeito”, contra a transfobia e a violência. É importante ressaltar que, desde 2018, eleitoras e eleitores trans puderam incluir o nome social no Título de Eleitor. Essa mudança permitiu chegar ao número mais próximo de pessoas trans no país.
Segundo dados oficiais, nas últimas eleições, 37.646 brasileiras e brasileiros optaram pelo uso do nome social, ou seja, 29.701 pessoas a mais do que nas eleições gerais de 2018, quando 7.945 eleitoras e eleitores solicitaram, à Justiça Eleitoral, a inclusão do nome social no cadastro. O número representa aumento de 373,83% em relação a quatro anos atrás.
Texto: Regina Bandeira
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias