Silviano*, 66 anos, não quis devolver os pertences de sua esposa após o divórcio. Murilo*, 19 anos, foi preso após destruir diversos móveis da casa de sua ex. Augusto*, 25 anos, mediante artifício e meio fraudulento, celebrou contratos de empréstimo em nome da ex-companheira, sem sua autorização, causando-lhe enorme prejuízo. Essas histórias têm um ponto em comum: a violência patrimonial – uma das cinco formas de violência contra mulheres previstas em lei.
A Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) define a violência patrimonial como qualquer conduta que subtraia ou destrua bens, instrumentos de trabalho, documentos pessoais ou recursos econômicos da vítima. Retenção de documento, quebra de celular, uso de dados pessoais para obtenção de benefícios são algumas das formas mais comuns em que esse tipo de violência se apresenta.
A juíza Madgéli Frantz Machado, titular do 1º juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), explica que apesar de aparentemente visível nem sempre as vítimas conseguem identificar essas condutas no instante em que são praticadas. Primeiro porque, não raro, elas já se encontram fragilizadas por outras formas de violência, como a psicológica e a moral, o que acaba deixando menos aparente a questão patrimonial.
Da mesma forma, alguns desses crimes levam tempo para que sejam descobertos pois as situações ocorrem frequentemente de maneira corriqueira, sem que transpareça a intenção por trás do ato. É o caso de Marcos, 47 anos, que pede frequentemente que a namorada faça empréstimos em seu nome, gerando um emaranhamento financeiro que dificulta a independência (e até mesmo o fim) do relacionamento entre os dois.
“A violência contra a mulher sempre tem como objetivo o controle da mulher. E uma das formas de controle é manter a companheira financeiramente dependente pois assim ela não tem condições de sair de perto desse homem”, observa a magistrada, que percebe em quase todos os casos envolvendo violência, há o tipo patrimonial. Para dar visibilidade a essa forma de violência, a campanha conjunta “21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher” e “Cartoons contra a Violência”, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), incluiu uma peça da cartunista Cecília Ramos que mostra como, em muitos casos, elas são proibidas de trabalhar e ter o próprio sustento, ficando assim dependentes dos companheiros.
Dano ao patrimônio
“Quebrar o celular é, infelizmente, algo muito frequente e humilhante: isso impede que ela fale com as pessoas, que converse com seus parentes, ou seja, impede a vítima de pedir socorro, de denunciar”, completou. Alguns sinais de alerta podem sugerir que uma mulher esteja enfrentando esse tipo de violência: é o exemplo da pessoa que precisa perguntar para o homem, seja ele marido, namorado ou companheiro, se pode fazer qualquer tipo de despesa pessoal. Não ter o gerenciamento de suas economias pode sinalizar uma dependência abusiva.
É importante dizer que a violência patrimonial costuma passar percebida em todos os extratos sociais e econômicos e pode existir mesmo quando o bem agredido ou ameaçado tem apenas relevância afetiva para a vítima. É o caso de uma foto, um objeto, até mesmo um animal de estimação.
Independentemente do valor monetário do bem, o efeito do dano na psique da vítima muitas vezes é difícil de ser identificado. Uma das mais novas formas de violência patrimonial que o Sistema de Justiça e de Segurança têm se deparado é com o estelionato sentimental, uma forma de utilização de bens da vítima, tirando proveito de sua confiança com intenção de se beneficiar. “Uma relação que é um golpe. Se relacionam muitas vezes em cidades diferentes. Esse homem cria uma ‘história de amor’ para obter vantagens financeiras. Muitas vezes, essa manipulação dura até algum tempo, com essa mulher o ajudando, sem perceber o golpe”, relata a juíza.
Amor ou estelionato amoroso?
Há medidas protetivas de urgência que podem ser acionadas contra o abuso econômico para proteger as mulheres, como a restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; a proibição temporária para que possam fazer contratos de compra e venda, locação de propriedade em comum; assim como a suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor.
Uma das diretrizes do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero – aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de aplicação em todo o Judiciário nacional – busca proteger as cidadãs que precisam da ajuda do Estado com o aprimoramento do olhar dos agentes em relação a desigualdade nas relações entre os gêneros. Aos magistrados, cabe conhecer e entender a perspectiva de gênero, aplicando-a em todos os processos que tramitam nos vários ramos de Justiça.
“A violência patrimonial muitas vezes está subentendida em processos aparentemente inofensivos. É preciso enxergar se o ‘polo mulher’ do processo está arcando com um ônus suportável, equilibrável”, afirma a juíza do TJRS.
De qualquer forma, é preciso que a vítima, amigos ou parentes que perceberem existir tal situação busquem a ajuda da polícia ou da Justiça para que o crime possa ser identificado e combatido na forma da lei. O silêncio e a inatividade da vítima, assim como da comunidade em seu redor, contribuem para perpetuar o ciclo da violência.
* Nomes fictícios para preservar a identidade dos envolvidos
Texto: Regina Bandeira
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias