Artigo: Turbantes e togas

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Foto: Ubirajara Machado/CNJ
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Artigo publicado originalmente em O Globo, em 31 de agosto de 2021

Luiz Fux*

A magistratura pressupõe independência olímpica, que carrega com esse atributo a coragem de decidir. Nos países em que juízes se sentem ameaçados, o Poder Judiciário se apequena perante a realidade. Onde não há juízes independentes, não há justiça nem paz social.

Essa é uma missão que transborda as nossas fronteiras. Não podemos estar tranquilos enquanto ainda há países onde aos magistrados não é assegurada a integridade física, tampouco o exercício de suas liberdades. Nesse cenário, juízes não decidem, sentem-se presos; não ostentam liberdade de expressão, mas vivem nas sombras da opressão.

Os perigos que acompanham o poder jurisdicional foram escancarados em escala mundial, no acompanhamento diário da delicada posição das juízas do Afeganistão, impedidas de cumprir suas funções institucionais. O protagonismo das magistradas representa o embate entre, de um lado, a subjugação das esposas (tradição) e, de outro, a crescente ocupação de espaços pelas mulheres (evolução dos valores).

A bravura dessas juízas, que têm noticiado ao mundo as violações de direitos humanos praticadas em seu país, remete às palavras da justice Ruth Bader Ginsburg. Em entrevista, Ginsburg ponderou que “nós [as mulheres] não devemos ser detidas de realizarmos plenamente nossas vocações nem [detidas] de dar contribuições à sociedade, pela mera expectativa de que precisaríamos nos encaixar num determinado padrão – isso porque somos parte de grupo que foi, historicamente, alvo de discriminação”.

Como sabemos, o Talibã exerce rígido controle sobre o livre desenvolvimento de suas personalidades, desejos, virtudes e planos de vida das mulheres. Essa prática vai de encontro ao direito dos povos (ius gentium), pelo qual o respeito à dignidade humana é cogente aos Estados-nações reunidos na comunidade internacional.

O Brasil é regido por Constituição Federal que eleva a República Federativa à condição de Estado Democrático de Direito, cujo pilar é a dignidade da pessoa humana. A Carta Maior impõe ao Brasil não apenas proteger a integridade física e psíquica das mulheres contra abusos de toda ordem, mas também criar o ambiente favorável à igualdade de gênero.

A autodeterminação e o empoderamento feminino são temas caros para o Observatório dos Direitos Humanos do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que está atento à luta das juízas afegãs e aberto para contribuir com as iniciativas nacionais e internacionais de proteção a essas cidadãs. O CNJ é lócus fundamental para instituir esse espaço de acolhimento, de diálogo e de ação em prol dessas magistradas.

Como ponto de partida, o Observatório dos Direitos Humanos estenderá convite às juízas do Afeganistão para que, se assim desejarem, possam participar de suas atividades e projetos. Outras ações serão divulgadas em breve.

A iniciativa coloca o Brasil no circuito internacional de construção da rede de apoio à integridade física e moral das mulheres investidas na magistratura. No caso do Afeganistão, é o mínimo que podemos garantir àquelas que outrora tiveram a coragem de impor sanções aos promotores do terrorismo, para que a toga, vestimenta associada ao Estado-juiz, seja tão honrada quanto o turbante, que simboliza a tradição milenar.

Neste momento, me vem a inspiração lúdica da poetisa norte-americana Maya Angelou, um dos registros literários mais perfeitos da resistência feminina, no poema “Still I rise”: “Você pode me riscar da História[… ]. Pode me atirar palavras afiadas / Dilacerar-me com seu olhar / Você pode me matar em nome do ódio, / mas ainda assim, como o ar, eu vou me levantar”. Este é um tributo às juízas afegãs.

(*) Luiz Fux é presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça