Para enfrentar a exclusão dos indivíduos em conflito com a lei que necessitam de atenção em saúde mental, muitas iniciativas têm surgido nos tribunais, com base na Resolução CNJ n. 487/2023. A normativa do CNJ institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário a fim de adequar sua atuação às normas nacionais e internacionais de respeito aos direitos fundamentais das pessoas em sofrimento mental ou com deficiência psicossocial em conflito com a lei.
As iniciativas, entretanto, esbarram na desinformação e no preconceito. Sendo assim, os grupos de trabalho compostos pelo Sistema de Justiça e pela Rede de Proteção Social trabalham pela sensibilização da temática, pelo alinhamento de fluxos e por investimentos, especialmente, na área da saúde municipal e estadual. Essa articulação interinstitucional e intersetorial é considerada essencial para consolidar o processo de desinstitucionalização. Nesse sentido, os GTs preveem a elaboração e assinatura de termos de cooperação técnica, de modo a endereçar e qualificar encaminhamentos, visando o atendimento adequado a essas pessoas sob custódia.
Articulação estadual
No Mato Grosso do Sul, por exemplo, o GT interinstitucional do qual o Judiciário faz parte trabalha desde 2018 com o Projeto Reintegra, que estabeleceu fluxos para a efetivação da reforma psiquiátrica. À época, foi feito um levantamento no qual foram identificados 71 pacientes nos estabelecimentos penais de Campo Grande, sendo 17 em medida de segurança ambulatorial e 54 em internação em unidades no sistema penal.
Desde então, a Equipe do Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei (EAP) realiza esse acompanhamento, utilizando a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) da capital e dos municípios do interior do estado.
Já foram atendidos 234 pacientes, dos quais 189 estão em acompanhamento ativo. Durante os três anos de atuação, a EAP participou da desinternação progressiva de 67 pacientes, realizando avaliações biopsicossociais, organizando vagas de acolhimento junto à Raps, e colaborando na construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS). Atualmente, ainda há 90 pacientes internados.
Uma das maiores dificuldades para o encaminhamento desses pacientes é a ausência de vínculo familiar para que essas pessoas sejam encaminhadas para seu local de origem. Por isso, o estado ampliou na capital o número de residências terapêuticas, serviço da Raps. Entretanto, ainda há defasagem desse equipamento no interior.
Em Tocantins, por sua vez, há 18 pessoas em medida de segurança em unidades prisionais. O Tribunal de Justiça do estado (TJTO) deu início aos trabalhos para implantação da política a fim de assegurar a dignidade desse público, por meio de articulação do GMF, para a criação de um GT interinstitucional.
A expectativa é que, em até um ano, todas as pessoas nessa condição sejam retiradas de ambientes prisionais. Para tanto, a Secretaria de Saúde deverá criar uma EAP, composta por psiquiatra, psicólogo, enfermeiro, assistente social e terapeuta ocupacional. A equipe será responsável por fazer esse planejamento, além de apresentar relatórios mensais sobre a evolução do programa terapêutico e definir a alta programada.
Conforme o juiz Allan Martins Ferreira, à frente da iniciativa no TJTO, a intenção é fazer um processo bem organizado e com responsabilidade: “O SUS tem preparo para acompanhar essas pessoas, mas falta apoio, especialmente técnico.” Quanto aos questionamentos sobre a periculosidade dos custodiados, o juiz disse que é preciso tratar na hora certa. “Não é prisão perpétua. Perigo é não dar o tratamento que uma pessoa em crise precisa para poder viver em paz com sua comunidade”, defende.
Na mesma linha, o desembargador supervisor do GMF do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), Ruy Muggiati, afirmou que será assinado um protocolo de intenções com órgãos envolvidos na aplicação da política na área carcerária. “A dificuldade que está sendo superada é a articulação política para a aplicação das normas voltadas à desinstitucionalização. Cada um precisa cumprir seu papel para garantir bons resultados.” Há ainda trabalho desenvolvido no âmbito das medidas socioeducativas, par assegurar direitos e garantir o cuidado em saúde mental de adolescentes e jovens a quem se atribua a prática de ato infracional ou em cumprimento de medida socioeducativa, observando o previsto na Lei n. 10.216/2001.
O desembargador conta que há fragilidades no protocolo de atenção à saúde mental, o que acaba deslocando a demanda para os estabelecimentos de execução penal. “A política corrige os fluxos para que o tratamento aconteça sem o rompimento de vínculos e o retorno da pessoa ao seu local de origem”, diz.
Ele destacou ainda que há uma exclusão social para as pessoas nessa condição e que é preciso ter lugares para apoiá-las, por exemplo em residências terapêuticas. “A visão consolidada é de que essas pessoas representam um problema para as famílias e para a sociedade e, por isso, eram colocadas nos manicômios e ali esquecidas. Com a Política Antimanicomial, é preciso revisitar essas condições, pois é possível, sim, que elas possam levar uma vida digna e proveitosa, desde que sejam tratadas de maneira adequada.”
Além dessas iniciativas e de Programas de Atenção Integral já instituídos, também estão sendo implantadas medidas e grupos de trabalho em Sergipe, Acre, Amazonas, Bahia, Ceará, Pernambuco, Mato Grosso, Rio Grande do Norte e Rio de Janeiro. As iniciativas contam com a participação dos Poderes Judiciário e Executivo, do Ministério Público, Defensoria Pública, da sociedade civil organizada e Universidades.
Seminário Internacional
Para consolidar e alinhar melhor as estratégias de abordagem sobre o tema, o CNJ realiza nesta sexta-feira (16/6), em Curitiba (PR), o segundo dia de debates do “Seminário Internacional de Saúde Mental: possibilidades para a efetivação da política antimanicomial na interface com o Poder Judiciário”, em parceria com o Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). O evento ocorre na modalidade presencial no TJPR, com transmissão ao vivo pelo canal do CNJ no YouTube.
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Texto: Lenir Camimura
Edição: Jônathas Seixas
Agência CNJ de Notícias