Trabalho de juízes da execução penal mantém estabilidade em prisões na pandemia

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Inspeção no Presídio Regional de Joinville (SC) durante a pandemia. Foto: Arquivo Pessoal
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A pandemia da Covid-19 agravou as condições do confinamento da população prisional no país. Sem visitas, proibidas pelas autoridades sanitárias estaduais, a tensão entre os 800 mil presos cresceu e chegou a gerar ameaças de rebelião. As crises entre presos e administração prisional, de repercussões imprevisíveis para a segurança pública das cidades, tiveram de ser mediadas e solucionadas por juízes e juízas de execução penal, que relatam o trabalho invisível que fizeram e seguem fazendo durante a pandemia. Boa parte das 1.738 inspeções realizadas este ano, conforme demonstra o Painel de Dados sobre as Inspeções Penais em Estabelecimentos Prisionais, foi realizada durante o avanço do novo coronavírus pelo país, que contaminou 4,5 milhões de brasileiros até o momento.

“Tive de ir para a porta da cadeia acalmar os familiares de presos”, afirmou o juiz de execução penal de Joinville/SC, João Marcos Buch. Durante a quarentena, famílias dos internos do Presídio Regional de Joinville protestaram quando foram levadas a acreditar que a Covid-19 estava vitimando presos dentro do presídio. Em outro episódio, com a chegada do inverno na Região Sul, a proibição de os familiares entregarem mantimentos e roupas aos internos nas visitas ao presídio quase resultou em um surto de gripe, que tem alguns sintomas idênticos aos apresentados por doentes da Covid-19. Uma escalada de pânico, diante da falta de testes rápidos, foi debelada a partir de uma inspeção presencial ao presídio.

“Em um dos dias mais frios do ano, os detentos me foram apresentados de bermuda e chinelo de dedo, sem meia. Ponderei que a solução emergencial seria autorizar as famílias a entregarem roupas na frente do presídio porque não era possível aquela situação continuar. Imediatamente, a Secretaria de Administração Prisional e Socioeducativa (DEAP) correu atrás. Se existe ausência do Estado, é óbvio que a responsabilidade do juiz é conter as lacunas que se apresentam”, disse Buch.

Manter a rotina semanal de verificar in loco as condições de oito presídios da região metropolitana da capital gaúcha durante a pandemia quase custou caro à juíza da Vara de Execuções Criminais de Porto Alegre Sonáli Cruz Zluhan. “Fui fazer uma inspeção no Complexo de Charqueadas. Um dos agentes que faziam nossa escolta passou mal na volta para Porto Alegre. Depois, descobrimos que ele foi contaminado pelo novo coronavírus, sua mulher acabou hospitalizada, mas a filha ficou assintomática. Nós viajamos com máscaras, álcool nas mãos, com as janelas abaixadas e, depois, fizemos o teste. Felizmente, não nos contaminamos”, afirmou a magistrada. O homem foi um dos muitos policiais militares que adoeceram durante a pandemia; a doença reduziu o efetivo de segurança no Presídio Central da capital gaúcha, onde os agentes prisionais são da PM.

No cargo desde 2018, a magistrada se acostumou ao trabalho arriscado de frequentar o ambiente hostil de prisões dominadas por facções criminosas, mas quando a decisão de um magistrado de plantão proibiu a entrada de alimentos no Presídio Central de Porto Alegre, um dos mais lotados e precários do país, Sonáli temeu pelo pior. “Conversei com o juiz que deu a decisão. Ele não conhecia a realidade prisional, por isso acabou entendendo a situação e reviu sua decisão, liberando a entrada dos alimentos, que já é um hábito”, afirmou a juíza, lembrando que atualmente as sacolas de visitantes – além dos próprios visitantes – são examinadas por escâneres 3D na porta de entrada do Presídio. “Uma vez, uma moça descobriu que estava grávida ao passar pelo escâner”, disse.

Em Minas Gerais, as entregas de alimentos são chamadas “jumbos” e seguem proibidas pela administração prisional. De acordo com o acompanhamento do juiz de execuções penais de Belo Horizonte Marcelo Lucas Pereira, até agora não se teve notícia de que prejuízos de assistência material tenham sido causados aos presos ou às presas. A suspensão das visitas aos poucos foi revertida parcialmente, no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, com videoconferências entre presas e familiares. No entanto, a falta de informações sobre as famílias foi o que causou a situação de maior instabilidade entre os quatro presídios que o magistrado inspeciona.

“No início da pandemia, elas não tinham nenhum contato com mundo exterior. Durante um bom período, desconheciam informações a respeito da família. Como muitas delas são mães jovens, que tiveram de deixar filhos pequenos aos cuidados de avós, muitas vezes, elas sentiram muito esse tipo de privação”, afirmou o juiz. Após serem interrompidas, as oficinas laborais dentro do complexo estão em processo de retomada. Para participar das atividades, é preciso estar no cumprimento do regime fechado ou semiaberto e ter autorização do juiz.

Como as oficinas foram suspensas, para evitar o fluxo de pessoas de fora da prisão, as presas do regime semiaberto que tinham direito a trabalhar passaram a se sentir prejudicadas, pois a rotina delas passou a ser a mesma de uma presa do regime fechado. Para reverter a situação, que já provocava atritos devido aos “comportamentos rebeldes” de algumas internas, o magistrado de execução penal decidiu recorrer ao artigo 5º da Recomendação CNJ n. 62. A série de orientações elaboradas pelo CNJ para manejar a execução penal no Brasil durante a pandemia prevê que a “concessão de prisão domiciliar em relação a todos as pessoas presas em cumprimento de pena em regime aberto e semiaberto, mediante condições a serem definidas pelo Juiz da execução”.

“Diante da situação, mudei o alcance da minha decisão anterior, para abranger também as presas nessa condição prisional, desde que comprovassem bom comportamento nos últimos seis meses. Basicamente, ficaram na prisão somente as mulheres do regime fechado, exceto aquelas que pertencessem ao grupo de risco. Me pareceu que (a medida) satisfez o controle dos ânimos juntamente com a possibilidade de visita virtual ou a distância”, afirmou o magistrado.

Para atender à proteção da vida e da saúde coletiva, conforme determinada pela Constituição Federal de 1988, o CNJ divulga um boletim semanal sobre a disseminação da Covid-19 nos presídios brasileiros. Até 14 de setembro, foram sido registradas 192 mortes no sistema carcerário, das quais 82 de servidores da administração prisional, desde o início da pandemia. No mesmo período, morreram 110 presos. Ao todo, 34,9 mil pessoas foram contaminadas pelo novo coronavírus nas prisões brasileiras, entre agentes e detentos.

Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias