É tarde da noite e uma mulher, assustada, corre para fora de casa com seu filho. Eles moram em um conjunto habitacional de classe média na Espanha e, com poucos minutos, o expectador saberá que se trata de um caso de violência doméstica. As cenas do filme Pelos Meus Olhos, de 2003, são relativamente familiares para o grupo que participou da oficina montada pela Coordenadoria da Mulher do Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (TJSE), ocorrida no último 17 de agosto. A sessão de cinema e outras dinâmicas fazem parte do trabalho de sensibilização de policiais militares em Sergipe, fruto de convênio firmado durante a Semana da Justiça pela Paz em Casa, que nos tribunais de Justiça dos estados vem promovendo o aumento de julgamento dos casos de feminicídio no país.
Desde 2006, quando a Lei Maria da Penha entrou em vigor, já houve 11 mil condenações de agressores em Sergipe. Só este ano, 775 condenações e mil medidas protetivas foram aplicadas. Boa parte dos casos denunciados passa pela Polícia Militar, seja pelo telefone 190, ou pelo atendimento inicial. Por conta dessa procura, a Coordenadoria da Mulher do TJSE decidiu investir na capacitação de operadores de segurança, a fim de melhorar o atendimento às vítimas de violência doméstica e familiar.
Redução do feminicídio – A iniciativa do TJSE recebeu elogios da conselheira Daldice Santana, que coordena o Movimento Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar do CNJ. Para ela, a capacitação é relevante em todos os processos, mas nessa fase inicial, quando a mulher precisa enfrentar a barreira da denúncia, é preciso que a Polícia esteja pronta para reagir de maneira consciente e empática à mulher, contribuindo para a possibilidade de se fazer Justiça. A capacitação é considerada uma das principais medidas para fortalecer o combate à violência doméstica e reduzir o número de feminicídios no país.
Na Carta de intenções formulada pelos magistrados na 10ª Jornada Maria da Penha, foi incluída a sugestão de parcerias entre as escolas de magistratura, o CNJ, a Secretaria de Políticas para as Mulheres e a ONU Mulheres, para promoção de cursos voltados a magistrados e servidores na temática da violência de gênero. “A capacitação serve para evitarmos a tolerância com a violência, para que tenhamos um Judiciário livre de preconceitos de gênero, reduzindo a revitimização dessa mulher”, defendeu a conselheira Daldice.
Treinamento – A exibição do filme para os policiais militares do TJSE durou quase duas horas, das oito destinadas ao trabalho de grupo. Além do filme, houve dinâmicas sobre questões de gênero e debates com troca de informações relativas aos atendimentos de casos desse tipo. “Nossa intenção é ampliar o olhar daqueles que são os primeiros a lidar com as famílias em crise. Nunca abordamos esse conteúdo para policiais, mas, para nossa surpresa, eles se mostraram abertos e interessados”, disse Sabrina Duarte, psicóloga idealizadora e palestrante do curso, que deverá ocorrer, ao menos, mensalmente, dependendo da disponibilidade dos participantes. A primeira turma contou com 26 policiais militares, sendo 18 homens e oito mulheres.
Dúvidas – Além da sessão, os policiais participaram de dinâmicas específicas, com exposição de dúvidas relativas ao enquadramento na Lei Maria da Penha, sob a supervisão da magistrada Isabela Sampaio Alves Santana, responsável pela Coordenadoria da Mulher do TJSE.
“Uma briga de vizinhos, por exemplo, pode ser caracterizada na Lei Maria da Penha? E se uma briga envolve uma doméstica que reside na casa e o patrão? São questões práticas que muitas vezes não estão claras e geram problemas na hora em que um agente precisa lidar com os cidadãos”, afirmou a magistrada, para quem existem lacunas na formação de quem opera o direito, que precisam ser eliminadas.
“Além das muitas dúvidas que se refletem no dia a dia, há sobretudo desconhecimento em relação à rede de assistência como um todo. Para onde eles podem encaminhar as mulheres? Naturalmente, esse processo vem sendo construído, desde a Lei Maria da Penha. Mas não há dúvida de que ainda precisamos melhorar, fortalecer, dentro das próprias instituições, os programas curriculares para que eles esclareçam essas dúvidas”, afirmou.
Fazer diferente – O trabalho de capacitação em Sergipe para o enfrentamento da violência doméstica já vem sendo feito em outros grupos, como o de professores (desde 2015), mães, pais e adolescentes (desde 2014) e profissionais do Judiciário (também desde 2014). “Esse é um trabalho que se desenvolve aos poucos, mas que faz diferença lá na ponta. Quando forem atender a próxima mulher, não tenho dúvida de que esses profissionais terão a possibilidade de fazer diferente. Se vão fazer, vai depender de cada um”, concluiu a psicóloga.
O Brasil é o quinto país do mundo no ranking de violência contra a mulher, segundo o relatório Mapa da Violência 2015. A maioria dos autores dos crimes são pessoas conhecidas da vítima, companheiros ou ex-companheiros. A violência familiar vem sendo debatida pelo CNJ desde 2007.
Por iniciativa do órgão, juizados ou varas especializadas no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher foram criados após a edição da Recomendação n. 9/2007. Em 2011, foi editada a Resolução n. 128, para a criação de Coordenadorias da Mulher voltadas para a articulação interna e externa do Poder Judiciário no combate e prevenção à violência contra a mulher, no âmbito dos tribunais estaduais.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias