Soure e Salvaterra, em Marajó, lidam com violência doméstica naturalizada

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Durante missão do CNJ, Marajó recebeu edição da Semana Justiça pela Paz em Casa, de combate à violência doméstica. Foto: Érika Miranda/TJPA
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Violência no ambiente familiar  está entre os crimes mais comuns contra crianças e mulheres nos municípios de Salvaterra e Soure, em Marajó, no Pará. Dados e relatos dessa realidade foram obtidos nos primeiros cinco dias de execução da Ação para Meninas e Mulheres do Marajó, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Governo do Pará.

Os 16 municípios que compõem o arquipélago contabilizam 763 processos de crimes sexuais contra pessoas com menos de 14 anos de idade pendentes de julgamento. A maior parte dos casos em análise na Justiça ocorreu em Breves – 228. Esse também é o município com maior população: 106.968 pessoas. Já em Soure, são 46 casos e, em Salvaterra, 54.

Com forte atuação de organizações da sociedade civil, especialmente igrejas, e dos conselhos tutelares, as denúncias de violência contra meninas e mulheres são recebidas em Soure por delegacias especializadas. Além de Breves, somente essa cidade em Marajó conta com esse tipo de estrutura de segurança pública dedicada ao atendimento da criança e do adolescente (DEACA) e outra para o atendimento à mulher (DEAM).

Entre janeiro e agosto deste ano, foram registrados 22 inquéritos envolvendo adolescentes em Soure – quatro foram flagrantes. Também foram expedidas quatro medidas protetivas e seis pedidos de prisão preventiva. Na DEAM, no mesmo período, foram abertos 82 inquéritos, sendo nove flagrantes. Ao todo, 47 medidas protetivas e três pedidos de prisão preventiva foram concedidos.

Em Salvaterra, que concentra todos os tipos de ocorrências na mesma delegacia, foram realizados 21 procedimentos por estupro de pessoas com menos de 14 anos de idade, oito por maus-tratos contra criança/adolescente e dois procedimentos por abandono de criança. A violência doméstica e familiar contra mulher originou 18 procedimentos, dos quais 14 tratam de lesão corporal e o restante por delitos como ameaça, injúria e vias de fato.

Perigo nos lares

Os dados foram coletados durante a missão do CNJ ao Marajó, realizada entre 19 e 23 de agosto. Embora a comitiva tenha recebido indicações de ocorrência de prostituição das “meninas balseiras” como única forma de sustento, além de ataques piratas a embarcações, nessas duas cidades prevalece um cenário de violência doméstica.

A delegada Fernanda Cunha é a titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher em Soure, no Marajó. Foto: Letícia Antum/Ag CNJ

De acordo a titular da DEAM de Soure, Fernanda Cunha, há casos de crianças que são abusadas desde novas por familiares ou pessoas que convivem na família. “Para a população, de um modo geral, é natural crianças namorando com 12 anos de idade. E isso acontece com o consentimento da família, porque provavelmente a mãe também passou por isso”, explicou.

Para a delegada Lilian Ribeiro, a abertura da Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente na cidade possibilitou uma nova percepção dos moradores da região sobre os crimes. “A comunidade não fazia ideia de que alguns atos eram ilegais ou que havia uma violência num determinado ato. É muito comum acreditarem que um crime não é um crime”, complementou.

Já em Salvaterra, a delegada Caroline Abdon reconhece disposição das mulheres vítimas de violência em buscar socorro. Porém, muitas vezes, após a denúncia e mesmo com medida protetiva de restrição do contato com o agressor, a vítima apresenta algum arrependimento. “Em um caso recente, uma moça foi agredida pelo marido no portão do comércio deles. A agressão foi filmada, ela pediu a protetiva e passados alguns dias ela voltou para solicitar a retirada da medida com medo de prejudicar o marido. Podíamos ter inclusive ampliado a proteção a ela, mas, em conversa com seus pais, a vítima foi aconselhada a reatar a relação por questões de conveniência social e financeira”, declarou.

Nem todas as pessoas reconhecem o ciclo da violência doméstica ou percebem quando a situação vai se agravando. Em fevereiro deste ano, a aposentada Maria Amélia Leal, que estava prestes a completar 90 anos de idade, foi brutalmente assassinada, sendo violentada e torturada, pelo filho de criação. A filha de dona Amélia, Vitória Leal, 69 anos de idade, descreve a mãe como uma pessoa alegre, ativa, muito compassiva e caridosa. “Minha mãe acolheu o rapaz que a matou como um filho. Ele tinha não apenas a confiança dela, mas de todos os meus irmãos. Até o assassinato, não havíamos percebido nada de incomum. A morte dela foi uma tragédia sem tamanho que nunca vamos superar”, disse.

Outra história revela a progressão da violência dentro de casa. Cilea Assunção, de 40 anos de idade , foi perseguida pelo namorado de 37 anos de idade e agredida fisicamente duas vezes. Ela também sofreu violência psicológica, mas a denúncia só aconteceu depois da ameaça de morte. “Precisei denunciá-lo para conseguir afastá-lo de uma vez por todas da minha vida. Ele era amigo de toda a minha família, vivia dizendo que não conseguiria viver sem mim, mas me maltratava. Quando comecei a me relacionar com ele, a ex-mulher dele contou que havia perdido os dentes da frente após uma briga. Eu não dei ouvidos e paguei o preço”, lamentou.

A recorrência dos relatos indica subnotificação de casos de violência aos órgãos oficiais, o que representa um obstáculo que precisa ser imediatamente superado, na avaliação da supervisora da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência Doméstica e conselheira do CNJ, Renata Gil. “A melhoria desse cenário só será possível com a conjugação de esforços de todo o sistema de justiça e do governo do Estado e o CNJ tem o papel de atuar como órgão impulsionador da articulação interinstitucional”, destaca.

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Texto: Ana Moura
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias

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