Silenciosa e brutal, violência psicológica atinge milhares de mulheres no Brasil

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Peça produzida pela artista Cecília Braga para a campanha Cartoons contra a Violência.
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Das diversas formas de abuso às quais uma mulher pode ser submetida, a psicológica é uma das mais sutis e devastadoras agressões cometidas. Sem marcas físicas visíveis, se instala lentamente. Em alguns casos, leva tempo para ela se perceber como vítima. Até setembro deste ano, tramitavam, em todo o país, quase 12 mil processos de violência psicológica. Dar visibilidade aos abusos praticados contra mulheres faz parte do esforço de conscientização do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio das campanhas 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra a Mulher e Cartoons contra a Violência.

O maior desafio ainda é identificar condutas que caracterizem violência psicológica. A criação de mecanismos de controle das ações da parceira, como tarefas, despesas, relações sociais, comportamentos é um sinal de alerta de que algo não vai bem. Tais condutas podem ser mais facilmente identificadas por meio da aplicação do Formulário Nacional de Avaliação de Risco, preenchido pela mulher com ou sem auxílio de profissional, preferencialmente aplicado pela Polícia Civil no momento do registro de ocorrência policial (Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 05/2020 e Lei 14.149/2021). O controle, em geral, vem acompanhado de tentativas de isolar a mulher de amigos, parentes, e também de agir de modos ainda mais invasivos.

A conduta do parceiro abusivo pode incluir ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, ridicularização, intimidação, chantagem, limitação do direito de ir e vir. Como resultado, as vítimas podem desenvolver danos emocionais significativos, hipervigilância, dor, angústia, incapacidade de tomar decisão, perda de concentração e memória, prejuízo à sua saúde psicológica e à sua liberdade de autodeterminação. Nos casos mais graves, é possível a configuração de quadros de estresse pós-traumático, depressão, ansiedade, entre outras enfermidades passíveis de configurar lesão à saúde mental da mulher.

Uma das grandes inovações da Lei Maria da Penha foi a inclusão dos tipos de violência e suas definições. O artigo 7º, inciso II, da Lei Maria da Penha esclarece que qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões configura violência psicológica. Outro instrumento legal que trata do tema é a Lei 14.188/2021, que criou o tipo penal de violência psicológica contra a mulher. A pena prevista é de reclusão de seis meses a dois anos e multa, se a conduta não constituir um crime mais grave. A prevenção ainda é o meio mais eficaz para impedir a escalada de uma violência que pode culminar no feminicídio.

Autopercepção

A artista visual Cecília Braga, criadora da ilustração que representa a violência psicológica na campanha Cartoons contra a Violência, acredita que a identificação dos abusos, sobretudo os mais sutis, passa pelo autoconhecimento e, sobretudo, por respeitar-se. “É necessário saber o que te incomoda e impor limites, acreditar neles com fé de que é para o seu bem-estar. Se o parceiro não sabe lidar com isso, é sinal que o relacionamento não vai dar certo. Se há descaso e deboche, menosprezo, aí é que a violência psicológica habita. O abusador faz a parceira duvidar de si mesma”, afirmou.

Dentro das fronteiras que se estabelecem as relações, Cecília apresentou para a campanha um cartoon que mostra o limite “turvo” presentes no ciclo de abuso. Para a artista, muitos parceiros vêm com disposição de cuidar e encantar com o objetivo de isolar a vítima – financeira e afetivamente. Ela alerta sobre a importância de se manter a independência como forma de autoproteção. “Os cartoons tem mostrado situações mais próximas da realidade, não só explicando, mas exemplificando. Se alguém se identificar pode ajudar a diagnosticar sua situação”, alertou.

Psicóloga da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica no Familiar do Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA), Edla Ferreira advertiu que uma mulher pode evidenciar situações de violência de diferentes maneiras. No caso da psicológica, a psicóloga recomenda que a vítima comece a observar comportamentos que causem desconforto, quais prejuízos a ação trouxe para a mulher e se é recorrente. “A mulher pode gravar áudios, guardar capturas de tela das mensagens trocadas que comprovem humilhação, constrangimento, xingamento ou proibição. É importante para mostrar como isso tem afetado a saúde mental dela”, sugeriu.

Para a coordenadora estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), desembargadora Marlúcia de Araújo Bezerra, apesar de frequente, a violência psicológica é pouco abordada. “Geralmente, a imprensa noticia a violência doméstica mais explicita, quando ocorrem danos físicos relevantes ou mesmo quando a mulher vai a óbito. Mas o autor de violência, em suas primeiras manifestações, não costuma iniciar as agressões físicas propriamente”, enfatiza.

Dependência emocional

O grupo de apoio Mulheres que Amam Demais Anônimas (Mada) promove reuniões em todo país a partir de um método de terapia coletiva adaptada do programa de recuperação dos Alcoólicos Anônimos (AA). Desde 1994 o grupo auxilia mulheres no Brasil, em geral, com dependência emocional, que saíram ou ainda vivem relacionamentos disfuncionais, marcados pela violência em vários níveis. Por meio das reuniões as mulheres discutem questões como medo do abandono, baixa autoestima, controle, relacionamentos destrutivos.

A profissional liberal Carmen*, 31 anos, encontrou, nas reuniões do Mada de São Paulo, a força necessária para romper um ciclo de violência moral e psicológica de um relacionamento de quase 10 anos. Filha de pai alcóolico, Carmen era casada com um dependente químico, que além dos problemas decorrentes do uso de drogas, criava situações que despertavam inseguranças e incertezas no dia a dia. “Eu nunca sabia se ia perdê-lo para as drogas ou para outra pessoa, já que ele sempre falava de outras mulheres que estavam interessadas e em contato com ele. Era uma sensação permanente de medo”, relembra.

Com o tempo, os abusos se tornaram mais frequentes e ostensivos quando o então marido passou a controlar seu celular, suas amizades por meio das redes sociais, isolando-a de amigos e familiares. Até mesmo as roupas que ela vestia eram definidas por ele. “Na época, eu estava fazendo doutorado, mas não pude concluir por conta de tudo o que estava vivendo. Quando comecei a frequentar o Mada pedi para a minha madrinha me acompanhar em uma loja para comprar roupas. Fazia muitos anos que eu não sabia o que era cuidar de mim”, lembrou.

O término da relação envolveu uma série de manipulações que incluíram o argumento religioso, já que ambos eram evangélicos. “Esse sempre foi um ponto determinante para a minha permanência na relação. Nesse período ele chegou a ligar para outras pessoas para falar mal de mim. Tive que cortar pessoas e mudar até mesmo minhas crenças para conseguir sair do casamento”, declarou.

Servidora pública aposentada, Marlene*, 57 anos, também frequentadora do Mada, viveu dois relacionamentos marcados por distintas formas de violência psicológica. No primeiro casamento, a convivência com o marido também dependente químico, tornou-se um desafio ainda maior em função das manipulações do ex-companheiro. “Havia sempre uma tentativa de ele buscar a piedade das pessoas, sobretudo a minha. Era alguém que eu precisava cuidar, salvar. Não conseguia me separar, não tinha forças, precisei de muita terapia. Aliás, foi no processo terapêutico que me entendi como uma mulher que ama demais”, pontuou.

Depois de sete anos solteira, a servidora começou a se relacionar com outro homem, com características bem distintas do ex-marido. “Ele era estruturado, tanto emocionalmente quanto financeiramente. Um relacionamento aparentemente perfeito. O início foi uma lua de mel. Uma abordagem diferente, ele cuidava de tudo, eu só não podia questionar nada. Aos poucos vi que eu não tinha voz”, lamentou.

Nos tribunais

Os tribunais estaduais dispõem de Coordenadorias Estaduais da Mulher em Situação de Violência para contribuir para o aprimoramento da estrutura e das políticas na área do combate e prevenção à violência contra as mulheres, instalados por orientação prevista na Resolução CNJ n. 254/2018, que instituiu a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário.

No TJCE, por exemplo, as medidas protetivas de afastamento têm prioridade e a análise deve ocorrer em até 48h. Nos últimos dois anos, o Judiciário cearense inaugurou mais de quatro varas especializadas em violência doméstica, totalizando seis atualmente. A corte lançou uma campanha, efetivada em parceria com o Laboratório de Inovação do tribunal, voltada à prevenção da violência contra as mulheres praticada por turistas que chegam ao Ceará.

Como provar

Juíza auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça, Luciana Rocha destaca a relevância  da palavra da vítima para comprovar uma violência psicológica, como orienta o Superior Tribunal de Justiça (STJ). No entendimento da corte, nos crimes praticados em ambiente doméstico ou familiar – em que geralmente não há testemunhas – a palavra da vítima recebe especial atenção.

Entre as demais formas de provar o crime de violência psicológica a magistrada cita os depoimentos de testemunhas, relatórios de atendimento médico, relatórios psicológicos, arquivos de áudio e vídeo dos momentos das agressões, imagens de captura de tela com mensagens, cartas, provas documentais da queda na produtividade laborativa ou desempenho escolar, mas destaca que exame pericial não é necessário, conforme diretriz do Enunciado 58 do Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid).

Texto: Ana Moura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

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