Reconhecidos como gargalo da Justiça por terem tempo de duração mais longo, os processos em fase de execução são responsáveis por boa parte da percepção de lentidão da Justiça. Com a Semana Nacional da Conciliação de 2021, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) propõe uma saída mais rápida e prática para esses litígios que podem ficar anos sem desfecho. Um acordo entre as partes em conflito pode por fim a parte das 10.836.989 ações de execução que terminaram o ano passado sem que a parte que ganhou a causa obtivesse a concretização de seu direito.
O caminho que leva à solução de uma execução civil a perdurar sem efeito começa quando a parte condenada não cumpre a decisão judicial para o pagamento de uma dívida ou a realização de outro tipo de obrigação. O juiz ou a juíza manda intimar, então, quem não cumpriu sua decisão e essa pessoa – física ou jurídica -, mas, mesmo assim, muitas vezes o condenado não atende à ordem judicial. Quanto mais a dívida demora a ser paga, maior a probabilidade de as partes discordarem sobre a atualização dos valores, podendo gerar, ainda, novas demandas judiciais.
De acordo com a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Trícia Navarro Xavier Cabral, uma das grandes dificuldades enfrentadas pelo tribunais nas execuções, é a localização de bens do devedor. “Os juízes e juízas precisam realizar buscas em diversos sistemas, e, na maioria das vezes, sem sucesso. Por isso, esses processos ficam anos tramitando no Poder Judiciário, sem solução, frustrando o credor, que não teve seu direito satisfeito, e o próprio devedor, que permanece com a dívida judicial, podendo, ainda ser inserido em cadastro de inadimplente”. Ela acrescenta que, para os tribunais essa situação afeta não só a quantidade de processos que continuam em tramitação, mas a sua própria credibilidade frente à sociedade.
Uma negociação para o pagamento da dívida resolveria a questão. Por isso, a Semana Nacional da Conciliação este ano vai priorizar processos em fase de execução que tenham possibilidade de acordo. Os núcleos e centros de conciliação estão selecionando ações com esse perfil e convidando as partes a negociar durante o evento, que ocorrerá entre 8 e 12 de novembro.
“É preciso entender que Semana é uma vitrine sobre o que é possível conciliar. Começamos a Semana, em 2006, com o objetivo de mostrar que era possível chegar a um acordo nos processos judicializados. O evento será um mostruário do que é possível fazer para se resolver situações judiciais ou extrajudiciais (conflitos que ainda não foram levadas à Justiça). Queremos que a sociedade perceba e comece a praticar o modelo de conciliação. Com o tempo verá que é viável e útil”, afirmou o juiz Alexandre Abreu, que é titular da 15ª Vara Cível de São Luís e também coordenador do Núcleo Permanente de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos do Tribunal de Justiça do Maranhão (Nupemec/TJMA).
Desafios
No dia a dia das varas de justiça, acordos nessa fase são raros por diversas motivações de quem não adere à proposta construída, de acordo com a juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), Hadja Rayanne de Alencar. Às vezes, o devedor não tem dinheiro, mas se a parte condenada for uma grande empresa, por exemplo, prolongar o desfecho do processo é uma prática institucional, em muitos casos. “Não tivemos ainda uma mudança de mentalidade nas empresas. Precisamos que as empresas enviem às audiências de conciliação prepostos com autonomia para negociar e decidir em nome da empresa. Precisamos que as empresas levadas à Justiça tenham uma política institucional de acordos”, afirmou a magistrada.
No 5º Juizado Especial Cível de Natal, onde a juíza atua, os bancos são atualmente os campeões de litigância no campo do direito do consumidor. Um fenômeno que tem levado bancos ao juizado especial é, de acordo com as petições dos clientes que recorrem à Justiça, o número crescente de empréstimos não solicitados, retenção indevida de valores, taxas abusivas e até fraudes. “Um exemplo, é quando o consumidor diz que não foi ele quem assinou o contrato”, afirma a juíza. Há também inúmeras disputas que envolvem companhias aéreas, como direito à remarcação de voos, e demandas a empresas de telefonia.
Obrigação de executar
Na falta de um acordo, a Justiça é obrigada a garantir o pagamento da dívida. Começa, então, uma busca por dinheiro nas contas e aplicações financeiras dos devedores. Rastrear possíveis fontes de recursos exige tempo de servidores especializados em operar sistemas com tecnologia de ponta. Recentemente, o CNJ atualizou o Sistema de Busca de Ativos e Recuperação de Crédito (SisbaJud) para viabilizar a quebra de sigilo bancário por decisão judicial, consulta on-line dos relacionamentos bancários do devedor com as instituições financeiras e buscas automatizadas nas contas até localizar os valores necessários à quitação de uma dívida.
No entanto, no atual contexto socioeconômico do país, é difícil encontrar dinheiro no banco em nome de quem deve. “A Justiça tem limites para buscar crédito”, afirma o juiz do TJMA Alexandre Abreu. Caso encontre dinheiro, o juiz precisa ordenar o bloqueio do valor necessário a pagar a conta com o credor. Ainda assim, dinheiro bloqueado não significa dívida paga. “Mesmo o direito (do credor) sendo reconhecido, o recebimento do valor devido não pode ferir o justo limite da dívida, determinada pela condição do devedor”, diz o juiz. Se o devedor provar que o dinheiro encontrado tem origem em benefício assistencial, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), salário ou que represente condição de sua sobrevivência, o bloqueio não será revertido para o titular da dívida.
Se a busca online em instituições financeiras não tiver sucesso, o devedor é obrigado a indicar bens que possam ser vendidos para satisfazer o que deve. “Em 20 anos de magistratura, eu vi um credor indicar uma ou duas vezes. Na grande maioria das vezes, (os devedores) não pagam e não indicam”, afirma a juíza coordenadora estadual dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos (Cejuscs) do TJRN, Daniella Simonetti. A magistrada também atua como juíza de família e usa a conciliação mesmo após dar uma sentença condenatória para evitar a prisão de um pai sem dinheiro que deva pensão alimentícia, única possibilidade de encarceramento de um devedor na lei brasileira.
A chamada “execução de alimentos” é exemplo de uma decisão descumprida por muitos devedores sem condições financeiras de obedecer à ordem judicial. No dia a dia da sua vara, a magistrada vê os motivos pessoalmente: desemprego, pandemia, salário e poder de compra diminuídos. “Na fase de execução, nós buscamos a conciliação para negociar a forma de cumprimento, não necessariamente o que foi decidido. Buscamos chegar à melhor forma da execução. Como aquela prestação será cumprida? Tenho de entregar um carro novo? Ok. Como e quando vamos fazer isso?”, explica.
As soluções normalmente envolvem o parcelamento. Para garantir o cumprimento do acordo, o pagamento pode incluir o valor de um 13º salário de outra renda extraordinária do devedor. “É na fase de execução que tentamos diminuir o percentual do valor do salário de acordo com o percentual de queda do salário, por exemplo”, diz a magistrada.
Busca de bens
Como nem sempre um acordo é possível, nem se encontra dinheiro na conta que possa ser penhorado, o juiz tem, então, de ordenar aos servidores da vara uma busca por bens que possam ser vendidos para amortizar a dívida. Novamente, o trabalho requer a operacionalização de buscas em sistemas semelhantes de rastreio de veículos (Renajud) ou outros bens, como imóveis (InfoJud ou SREI). Mesmo assim, após horas de pesquisa, a devassa da Justiça pode ser frustrada.
De acordo com o juiz auxiliar da 12ª vara do Trabalho de Belém, Deodoro Tavares, em muitos casos de “execução forçada”, os servidores de sua vara dependem da colaboração de um setor especializado do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (PA/AP), o Núcleo de Pesquisa Patrimonial. O serviço de investigação é necessário, porque devedores de má fé lançam mão de um recurso chamado “blindagem patrimonial”, quando colocam outras pessoas como titulares de bens que são, na verdade, seus. O magistrado, que também coordena o núcleo, afirma que o trabalho é rastrear os bens registrados em nome não do devedor, mas dos seus filhos, parentes, amigos. “Informamos as varas do trabalho dos indícios de blindagem patrimonial e de outras fraudes. Hoje em dia, há muitas formas de ‘esconder dinheiro’, como abrir holdings familiares para administrar os bens”, diz o magistrado.
Quando a busca é “frutífera”, o bem é encontrado no nome de quem deve. Nesse caso, o devedor pode oferecer o bem ao credor como forma de pagamento da dívida (desde que os valores do bem e da dívida sejam parecidos). Para que o credor possa aceitar a proposta, no entanto, o juiz precisa antes convocar um perito que faça a avaliação do bem, cuja venda ficaria a cargo do credor. Como o credor não é obrigado a aceitar a oferta, em caso de recusa, a lei determina que o juiz organize um leilão para vender o bem pelo maior lance. Incluir um bem em um leilão exige mais tempo de tramitação do processo e dezenas de atos processuais da secretaria da vara, pois normalmente não se leiloa um bem por vez. Quando finalmente o leilão acontece, nem sempre há compradores que oferecem lance mínimo de 30% do valor avaliado do bem.
“Além de ser um ato caro para o Poder Judiciário, o leilão não tem muito êxito. Quem compra quer comprar mais barato, os lances são inferiores ao valor do bem”, afirma a juíza de Natal, Hadja Rayanne de Alencar. Graças ao novo Código de Processo Civil, em vigor desde 2016, as atividades do juiz e dos servidores para organizar um leilão foram compartilhadas com o advento da figura do pregoeiro ou leiloeiro.
Uma das tarefas do pregoeiro é viabilizar a logística de exposição dos bens em leilão. “Se o juiz determina a apreensão de uma lancha para saldar uma dívida, a Justiça do Trabalho não tem um caminhão-guincho para recolher a embarcação”, afirma o juiz do TRT8, Deodoro Tavares. Segundo o magistrado, muitos pregoeiros têm equipamento para a coleta e depósitos para armazenar o bem apreendido enquanto não é arrematado. O novo CPC também permite que um acordo aconteça em qualquer etapa do processo, poupando tempo à Justiça e desgaste a quem teve seu direito reconhecido pelo Poder Judiciário, mas ainda aguarda a concretização de uma decisão judicial.
Gargalo da Justiça
O anuário estatístico do CNJ mais recente, Justiça em Números 2021, indica que processos de execução ou em fase de cumprimento de sentença, fase do processo em que a Justiça dá efetividade à decisão judicial, ocorrem em proporção muito maior que os processos na fase de conhecimento. A quantidade de processos de execução ou em fase de cumprimento é 54% maior que o volume de ações judiciais em fase de conhecimento, o estágio anterior da ação na qual o juiz ouve as partes e busca informações para tomar uma posição a respeito do conflito. O foco da XVI Semana Nacional da Conciliação é diminuir essa diferença.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias