O uso indiscriminado da tecnologia sem preocupação com a individualização dos casos e acompanhamento por equipes especializadas, questões éticas sobre compartilhamento de dados e seletividade penal e racial foram temas abordados durante o segundo dia da Conferência Internacional sobre Monitoração Eletrônica. O evento organizado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e apoio do Ministério da Justiça e da Segurança Pública no contexto do programa Fazendo Justiça acontece até esta sexta (23) no auditório do CNJ, em Brasília, com transmissão ao vivo em inglês e português pelo canal do CNJ no Youtube.
No primeiro painel do dia, a temática foi o papel das novas tecnologias na monitoração eletrônica. Apesar dos avanços, o uso excessivo também tem “efeitos perversos para toda a sociedade”, como destacou o juiz do Tribunal de Justiça de Santa Catarina ¬Alexandre Morais da Rosa. Ele lembra que recursos tecnológicos avançados, como aplicativos em smartphones, não podem servir para perseguir ou rastrear indivíduos indiscriminadamente. Professor da Universidade de Bucharest (Romênia), Ioan Durnescu, citou o avanço que levou até o desenvolvimento de dispositivos subcutâneos associados à monitoração eletrônica, que necessitam de uma abordagem considerando aspectos éticos, de privacidade e de eficácia. “A monitoração, sozinha, não pode promover mudanças comportamentais significativas, a menos que acompanhada por intervenções transformadoras”, afirmou.
Ao analisar a relação entre tecnologia e justiça criminal, Hannah Graham, professora sênior em Criminologia da Universidade de Stirling, no Reino Unido, disse ser crucial reconhecer os danos potenciais causados pelo uso punitivo de tecnologias e dados pessoais. “A simples capacidade da tecnologia não implica necessariamente que devemos usá-la, nem que essa inovação é sinônimo de benefício. Devemos questionar quem se beneficia e em nome de quem a inovação tecnológica ocorre. Temos um imperativo ético de cuidar para que a tecnologia não seja utilizada para maquiar falhas sistêmicas e minar respostas mais humanas e minimalistas”, explica.
Seletividade penal e racial
No debate sobre os efeitos da política de monitoração eletrônica sobre os grupos socialmente mais vulneráveis teve o depoimento da experiência pessoal do ativista e pesquisador James Kilgore, diretor de Pesquisa do Projeto Desafiador de E-Carceration, dos Estados Unidos. Ele foi monitorado eletronicamente e relembrou a falta de transparência e a ausência de uma política nacional que ordene a medida no país. Kilgore questiona a ideia de que o monitoramento é melhor do que o encarceramento, ressaltando a falta de benefícios para as pessoas monitoradas e os problemas enfrentados, como restrições de movimento e violações de direitos.
Para o advogado e pesquisador Emmett Sanders, alarmes falsos nos dispositivos e problemas com os sinais de GPS resultam em prisões injustas e privações de liberdade para indivíduos monitorados. Sanders destacou ainda a representação desproporcional de pessoas negras e hispânicas nas estatísticas de monitoração eletrônica nos EUA. “A monitoração eletrônica não é uma exceção à regra do racismo nos Estados Unidos. Na verdade, é a continuação”, afirmou.
Fabio Esteves, juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, também destacou o racismo estrutural na sociedade brasileira e suas especificidades com relação ao contexto estadunidense. Esteves, assim como Kilgore, questiona a ideia de que o monitoramento eletrônico seja uma solução adequada para o problema do encarceramento em massa. Embora possa parecer uma alternativa, é necessário considerar seus efeitos desproporcionais na população negra. “Devemos refletir sobre a ressignificação de tecnologias que supostamente visam combater o racismo, mas acabam fortalecendo o controle racial”.
Fechando o segundo painel do dia, Alessandra Coelho, diretora na Superintendência de Políticas sobre Drogas e Acolhimento a Grupos Vulneráveis da Seades-BA, apresentou a experiência do programa Corra pro Abraço, que atende pessoas em situação de rua, jovens de bairros periféricos e pessoas em conflito com a lei. Citou o caso de Luiz (nome fictício), homem negro de 40 anos com três filhos, que acumulou 133 violações da tornozeleira eletrônica antes de buscar assistência jurídica. Entre as dificuldades que enfrentou para cumprir a medida estava a restrição de horário para retorno ao seu bairro, o que acabava por levá-lo a dormir nas ruas quando não conseguia chegar a tempo e a necessidade de buscar lojas dispostas a permitir que ele carregasse o aparelho.
Prisão domiciliar e monitoração eletrônica
Segundo dados do Executivo Federal, até 2022, dos 183.603 custodiados em prisão domiciliar, 92.241 também utilizavam a monitoração eletrônica. Ao falarem sobre as disfunções práticas da prisão domiciliar com monitoração eletrônica, especialistas destacaram o impacto logístico, econômico e social da utilização das medidas em conjunto.” A prisão domiciliar não é uma medida cautelar alternativa à prisão, já que o indivíduo deve ficar dentro da residência estabelecida, não deixa de ser uma prisão. É diferente da monitoração eletrônica, que sim, é entendida como uma alternativa penal ao encarceramento”, disse a juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Paraná, Fernanda Orsomarzo. A juíza também destacou como a medida é limitante para a vida das mulheres mães de crianças com até 12 anos. “É como se fosse um ato benevolente do juiz, não um reconhecimento de um direito”.
Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ribeiro Dantas, o monitoramento deve seguir uma lógica distinta do encarceramento, em que um tira a liberdade e o outro controla a liberdade. “Precisamos alterar a mentalidade das pessoas que estão operacionalizando esses mecanismos para que retirem essa mentalidade do encarceramento”. O juiz de Execução Penal Roy Murillo Rodríguez, que atua na Costa Rica, afirma que a monitoração eletrônica como é executada atualmente deixa estigmas e dificulta a ressocialização do indivíduo. “A palavra prisão gera distorções que afetam a forma como se cumpre esse tipo de sanção. É importante que a medida seja acompanhada pelo sistema criminal, que informe ao custodiado como ele deve cumprir a pena, e também garanta a possibilidade ressocialização”.
Proteção social e estigma
Na avaliação de juízes e especialistas, embora o objetivo principal da monitoração eletrônica seja garantir a segurança pública e o cumprimento de medidas judiciais, é essencial que o sistema seja projetado levando em consideração a realidade, os direitos e a dignidade das pessoas monitoradas. Em depoimento sobre sua trajetória como pessoa monitorada, o presidente da Associação Mais Liberdade, Coordenador da RAESP-MT e pesquisador de gênero nas prisões, Sandro Augusto Lohmann, relembrou: “Quando me perguntam o que é e como se faz justiça social eu tenho certeza que não é com tornozeleira. Enquanto egresso LGBTQIA+ do sistema penitenciário, a Resolução 348 do CNJ é o que tem nos salvado, garantindo condições mínimas de existência no país que mais mata essa população. Dentro do tema de monitoração eletrônica eu venho falar da dupla invisibilidade de pessoas LGBTQIA+ presas e egressas, pois vivemos ciclos infinitos de entradas e saídas do sistema prisional. A população trans e travesti, que na sua grande maioria precisa se prostituir para sobreviver, por vezes viola o horário da monitoração e acaba voltando ao sistema”.
Para a defensora pública do estado do Rio de Janeiro e assessora do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), Caroline Tassara, “a medida de monitoração eletrônica não deve se limitar à restrição de liberdade, mas sim buscar em algum nível a reintegração social da pessoa monitorada”.
“O monitoramento eletrônico é alternativa à prisão ou à liberdade? O que acontece com uma pessoa monitorada se ela estiver perto de uma loja e o estabelecimento for assaltado? Sabemos bem o estigma sobre quem usa uma tornozeleira eletrônica. Precisamos buscar meios para assegurar os direitos dessas pessoas. Mas, para isso, precisamos superar repertórios punitivistas que olham a monitoração eletrônica como benefício”, enfatizou o juiz do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Geraldo Fidelis.
O professor de criminologia na Nova Zelândia Liam Martin afirma que o país possui o maior nível de monitoramento eletrônico per capita do mundo. “As maiores empresas do mundo hoje vivem a partir do rastreio e comportamento das pessoas. Com o celular, hoje em dia, estamos rastreáveis em quase qualquer lugar do mundo. Com isso, começamos a pensar em outras formas de monitoramento eletrônico no campo da Justiça Criminal, precisamos utilizar dessas tecnologias [já existentes] e criar redes seguras de acompanhamento”.
Ao apresentar as estratégias do Executivo Federal para fortalecer o campo da monitoração eletrônica, a coordenadora nacional de Monitoração Eletrônica da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Brasil), Manuela da Silva Amorim, disse que a disponibilidade do instrumento não pode tirar a visão crítica sobre o que isso representa. “Não podemos ‘tornozelar’ uma pessoa e deixar ela voltar para o mesmo contexto que a levou ao cárcere. E para isso precisamos primeiro garantir o trabalho efetivo das centrais e de seus operadores, com apoio da equipe multidisciplinar no acompanhamento da medida”.
Experiências internacionais
Apesar das especificidade de suas leis, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Austrália aplicam métodos semelhantes ao Brasil quando se trata de monitoração eletrônica de pessoas. Já Holanda, França, Suécia e Japão têm experiências diferentes. O juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça, Otavio Port, apontou que estudar variados contextos proporciona achados e reflexões sistematizadas dos desafios e boas práticas relacionadas à monitoração eletrônica. “As experiências internacionais podem trazer descobertas valiosas para o desenvolvimento da política e práticas mais eficientes para a justiça criminal no Brasil”.
A professora da Universidade de Brasília Cristina Zackseski apontou como a lógica de mercado impulsiona a utilização da monitoração eletrônica como forma de controle, mas sem a mitigação da violência. “No caso catalão que estudei, o controle eletrônico está situado na diminuição do encarceramento. Houve um abandono no plano de construção de novas unidades prisionais após a mudança na lei de drogas em 2010. E o objetivo da política criminal no país é de ampliar a intervenção em meio aberto. Eles partem da ideia de uma transformação dos condenados que, treinados para o convívio social, precisam colocar em prática o que supostamente aprenderam”.
A especialista em Monitoração Eletrônica do programa Fazendo Justiça (CNJ/PNUD), Izabella Pimenta, apontou possíveis caminhos para mudança na política brasileira a partir da realidade social do país. “Precisamos de decisões judiciais baseadas no princípio da individualidade, pois não é interessante ter decisões que não olham para a trajetória do indivíduo. O foco deve ser nos protocolos para ajuste da medida e reavaliação das condicionalidades do Juízo”.
Confira as palestras da manhã do segundo dia do evento:
Confira as palestras da tarde do segundo dia do evento:
Texto: José Lucas Azevedo e Natasha Cruz
Edição: Débora Zampier e Nataly Costa
Agência CNJ de notícias