A garantia dos direitos da pessoa negra no Brasil, seja quando vítima de violência ou quando acusada de delito, deve estar no escopo do trabalho da Justiça em prol da igualdade racial e no combate ao racismo. Neste sentido, os participantes da reunião pública promovida na quarta-feira (12/8) pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para apoio à formulação de políticas judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Judiciário sugeriram o acompanhamento mais próximo sobre processos em tramitação na Justiça que tratem de racismo e injúria racial e a adoção de medidas que evitem condenações injustas baseadas na cor da pele.
O racismo no Judiciário foi abordado pela representante da Anistia Internacional no Brasil, Jurema Werneck. Doutora em Comunicação, mestre em Engenharia da Produção e graduada em Medicina, Jurema Werneck, que é negra, destacou que o racismo no Brasil é estrutural e, para enfrentá-lo, são necessários mecanismos que rompam com a desigualdade racial. Entre as medidas necessárias, ela citou a importância de o Judiciário visibilizar, por meio de ações e condutas, que está do lado do antirracismo. “Se há racismo, se o Brasil é um país racista, necessariamente a cultura institucional reflete isso e confere privilégios a alguns grupos em detrimento a outros. E é preciso interpor mecanismos que rompam isso”, defendeu Jurema Werneck.
Em relação à população carcerária formada por negros, a coordenadora do Núcleo contra a Desigualdade Racial da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DP-RJ), Lívia Casseres, apresentou levantamento recente do órgão fluminense sobre as audiências de custódia. Os dados revelaram que oito em cada 10 presos em flagrante no Rio de Janeiro apresentados à autoridade judicial são negros e 80% das denúncias de agressões cometidas no ato da prisão são feitas por indivíduos negros. “Não há saída senão uma intervenção profunda, inclusive com a produção de memória sobre a necessidade de explicitar o papel histórico do sistema de Justiça como agência de produção de assimetrias raciais”, disse.
Já a socióloga Regina Trindade Lopes, ex-assessora técnica do Pacto Nacional pelo Enfrentamento a Violência contra a Mulher no Estado de Alagoas (SPM/SEMUDH-AL) e do Caderno Temático LGBT (PNUD/Ministério da Justiça), recomendou o fortalecimento do mutirão carcerário eletrônico para garantir o direito das pessoas a uma execução penal mais justa. Também indicou a capacitação de juízes no tocante à questão racial e o fortalecimento dos Escritórios Sociais, que reúnem, em um mesmo local, atendimentos de suporte aos egressos do sistema prisional e suas famílias em áreas como saúde, educação e qualificação profissional. “Não podemos falar em combate ao racismo se não olharmos para o número de pessoas encarceradas sem condenação e o seu perfil social. A execução das penas reflete o olhar dos juízes”, disse Regina Lopes.
A supervisora-geral do Instituto Brasileiros de Ciências Criminais (IBCCrim), Luciana Zaffalon, citou três pontos para enfrentar o racismo na Justiça: a realização de pesquisas e avaliações que consigam detectar os avanços ou retrocessos dos programas e ações da Justiça, o enfrentamento da violência e da letalidade institucional e a redução do encarceramento de pessoas vinculadas a drogas. “Duas entre três mulheres encarceradas estão nessa situação devido à política antidroga. São as mazelas que precisamos enfrentar de uma forma diferente. O CNJ pode contribuir nessas questões”, afirmou.
Uma das sugestões da defensora pública da União, Rita Cristina de Oliveira, vai contra o encarceramento em massa que aprisiona principalmente negros. A ideia é cruzar o perfil étnico-racial dos presos em flagrante e o mérito das eventuais condenações para identificar “os processos de seletividade na política criminal”, conforme definição da defensora pública da União. Outra mudança proposta para a justiça criminal é que se rediscuta o modelo de reconhecimento pessoal para identificação dos autores de crimes, que induz a erros nos vereditos devido à precariedade desse modelo de obtenção de provas.
Já Luciane de Oliveira Machado, que integra coletivo de professoras pretas de São Leopoldo (RS) e é professora com Especialização em Educação para a diversidade pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), citou sua experiência no tribunal do júri, que julgam crimes dolosos contra a vida. De acordo com a especialista, é preciso rever a forma como os júris são formados para trazer mais equilíbrio às sentenças. Ela trouxe três propostas: ter paridade racial na convocação dos membros do júri ter paridade racial na composição do júri, ter um curso de formação anual para todos os membros do júri sobre representação racial.
Atenção às vítimas negras
Outra ação proposta pela coordenadora do grupo de políticas étnico-raciais da DPU, Rita Cristina de Oliveira, é a criação de um observatório interinstitucional para apurar denúncias e repreender atos de “discriminação sistêmica, preconceito e outros tipos de tratamento de cunho discriminatório” no sistema de Justiça. Rita indicou também o levantamento periódico da quantidade de processos de casos de racismo e injúria racial, para discussão do grupo de trabalho que trabalha pela igualdade racial no Judiciário, coordenado pelo CNJ. A medida aborda a garantia de direitos aos negros quando vítima em processo judicial.
A questão foi tratada também pela coordenadora da ONG Criola e doutora em Educação, Lucia Maria Xavierde Castro. Para ela, o enfrentamento das desigualdades sociais passa, sobretudo, pelo desenvolvimento de políticas públicas para a população negra e uma reforma do próprio Sistema Judiciário. “Esse racismo tem gerado muitas injustiças, violências, perda de liberdade, adoecimento e morte da população negra. Sobretudo, pela parcialidade do sistema na negação de direitos”, disse. Lúcia Maria ressaltou ainda que as principais vítimas do Sistema de Justiça ainda hoje são as mulheres e negras. “São aquelas que, afetadas pela violência, pela pobreza e invisibilidade, não conseguem se apresentar à Justiça como sujeito pleno de direito. Resgatar o direito das mulheres negras é resgatar e rever esse sistema”, disse.
O sociólogo Sales Augusto dos Santos, pós-doutorado pela Universidade de Wisconsin (EUA) em Direito do Trabalho e Relações Raciais, trouxe como contribuição sua investigação em relação ao número de processos que correm no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT 10 – DF/TO) relativas ao racismo. O especialista ainda não conseguiu os dados para a sua pesquisa e pediu ao CNJ que garanta aos pesquisadores acesso a dados públicos da Justiça. Ele salientou também que os debates relativos às questões étnicas e raciais devem percorrer as universidades em todos os níveis, a começar pela graduação. “Hoje, infelizmente, essa capacitação está focada ainda nas escolas de magistratura”, disse.
Sobre a pena para réus em crimes raciais, o desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto, do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), criticou os efeitos práticos do estabelecido atualmente para quem é enquadrado na Lei 7.716/89 por impedir o acesso ou recusar atendimento em comércios, hotéis, restaurantes, bares, clubes sociais, salões de beleza, transportes públicos, entre outros. “As penas mínimas definidas na Lei 7.716/89 correspondem a um ano, o que implica que os juizados especiais criminais suspendem o processo para réus primários por decadência (perda do direito de ação devido ao excesso de tempo transcorrido). O réu nem vai responder ao processo criminal. No caso da pena máxima – para casos de um a três anos –, o cumprimento da pena já começa no regime aberto. Podemos modificar isso”, afirmou o desembargador do TJBA.
A reunião pública também recebeu contribuições sobre o direito das comunidades quilombolas. A representante do Quilombo Vidal Martins, em Florianópolis (SC) Helena Jucélia Vidal de Oliveira afirmou que, hoje, o maior problema dessas comunidades é a falta de titularidade das terras. “Estamos abandonados à própria sorte. Poucos quilombos têm a titularidade das terras e precisamos delas para plantar e morar”, enfatizou. Ela conta, inclusive, que a comunidade onde mora está há seis anos lutando na Justiça para ter a posse do terreno onde vivem.
Medidas internas
O evento também possibilitou sugestões sobre mudanças em processos internos da Justiça que podem contribuir para o alcance da igualdade entre negros e brancos. Segundo o desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto, do Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA), é preciso ampliar o alcance das políticas de ação afirmativa dentro do quadro de pessoal dos tribunais. Britto defendeu cotas para funcionárias de empresas prestadoras de serviço terceirizadas e para funções de confiança e cargos comissionados. Com isso, deve-se permitir o acesso de pessoas negras a espaços de poder até hoje pouco acessados. “É emblemático ter afrodescendentes nessas posições”, afirmou o desembargador.
Já o representante do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF 4 – RS/SC/PR) e desembargador Federal Roger Raupp Rios defendeu desde a realização de eventos para debate da desigualdade racial nos tribunais até o estabelecimento de metas antirracistas e a reforma da Resolução CNJ n. 230/16, para incluir questões antirracistas, de gênero e demandas das populações tradicionais no escopo do normativo originalmente destinado à proteção dos direitos das pessoas com deficiência no Poder Judiciário.
A mudança abrangeria a arquitetura das instalações das unidades judiciária. Seria banida, por exemplo, a denominação “elevador de serviço”, que discriminam os funcionários terceirizados do tribunal ao restringir a circulação desses trabalhadores. “Elevadores de carga não são de serviço. (Chamá-los assim) é um costume de muitos anos, inconsciente, e um exemplo de discriminação. Tem um efeito deseducador, nos deforma enquanto indivíduos e instituições o racismo estrutural”, afirmou.
Quanto a medidas para aprimorar a relação dos tribunais com a sociedade, Rios propôs a prestação anual de contas sobre as iniciativas dos tribunais para enfrentar a discriminação racial, prêmios para pesquisadores da temática da discriminação e canais de participação permanente da sociedade civil dentro da administração judiciária, para deliberar sobre questões raciais. “Não se trata de prestação de jurisdição sem discriminação, mas contra a discriminação. Se isso não for observado, a injustiça vai ficar entranhada na maneira de conceber as formas das instituições”, afirmou o desembargador.
A possibilidade de o Sistema Judiciário adotar práticas que incentivem as políticas de diversidade e inclusão racial dentro das instituições também foi defendia pelo advogado e professor Thiago Gomes Viana. Para ele, os tribunais poderiam trazer em seus regimentos internos a adoção de boas práticas como forma de promoção na carreira do Judiciário “É uma forma de estimular a proatividade dos servidores para a promoção da igualdade racial”, pontuou.
Reunião pública
Ao todo, vinte e oito pessoas foram habilitadas para apresentar sugestões ao grupo de trabalho instituído pela Portaria no 108/2020. O colegiado do CNJ é destinado à elaboração de estudos e indicação de soluções para a formulação de políticas judiciárias sobre a igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário. Além das questões referentes a garantia de direitos a vítimas e a réus negros, a reunião recebeu contribuições sobre o aperfeiçoamento do sistema de cotas na Justiça e da formação continua de magistrados e operadores do direito nessa temática.
Para ampliar a participação e o debate, o CNJ lançou edital de chamada pública com prazo até 18 de agosto para o recebimento de sugestões formuladas via memorais escritos por outros interessados. As sugestões devem ter, no máximo, 10 páginas, seguir os critérios contidos no Edital de Convocação nº 001/2020 e serem enviadas pelo endereço eletrônico igualdaderacialnoPJ@cnj.jus.br.
Agência CNJ de Notícias
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