Investigar, julgar e processar com perspectiva de gênero são atos que estão entre os maiores e mais atuais desafios que agentes de polícia, integrantes da magistratura e demais profissionais do Sistema de Segurança e o de Justiça têm no enfrentamento à violência contra a mulher no Brasil. O tema foi debatido no segundo dia da Jornada Lei Maria da Penha, nesta terça (8/8), em Fortaleza (CE).
A ouvidora nacional da Mulher e ministra do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Maria Helena Mallmann abriu o painel sobre a Adoção da Perspectiva de Gênero na Investigação, Processamento e Julgamento de Crimes contra as Mulheres, citando a importância da união de mulheres e magistradas nos últimos anos.
“Foi uma construção para chegarmos até aqui e temos enfrentado muitas dificuldades para conquistarmos nossos espaços. […] A adoção da Resolução n. 492/2023 é um marco histórico nesse caminhar de enfrentamento às violências em todos os sentidos. A libertação da mulher inclui o respeito no lugar de trabalho”, disse a ouvidora sobre o combate ao assédio no espaço profissional.
A Resolução n. 492 do CNJ tornou obrigatórias as diretrizes do Protocolo para Julgamento na Perspectiva de Gênero em todo o Poder Judiciário Nacional. O olhar sob perspectiva de gênero tem como objetivo evitar que as mulheres sofram com discriminações naturalizadas pelos anos de invisibilidade da desigualdade, especialmente institucionalmente.
A coordenadora do Comitê de Incentivo à Participação Feminina e do Comitê de Enfrentamento do Assédio Moral, do Assédio Sexual e da Discriminação no Poder Judiciário do CNJ, conselheira Salise Sanchotene, reforçou a necessidade da capacitação dos magistrados em relação às lentes de gênero. “A sociedade ainda é baseada nos estereótipos sexistas, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) reconhece que a Lei Maria da Penha contribuiu para o avanço amadurecimento, mas também que as mulheres ainda enfrentam muitas dificuldades do acesso à Justiça. A imagem estereotipada e desnivelada, em nível institucional, ainda persiste”, disse.
Violação de direitos humanos
Salise alertou para o fato de os membros do Judiciário ainda pouco observarem os precedentes das cortes internacionais, convenções, declarações e tratados internacionais, assinados pelo Brasil. E citou a chacina ocorrida no Complexo do Alemão (RJ), na Favela Nova Brasília, cujos crimes sexuais cometidos contra meninas e mulheres só foram apontados após o caso parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Na Favela Nova Brasília, 13 pessoas, sendo quatro menores de idade, foram mortas em incursão da polícia do Rio de Janeiro. Três mulheres (duas menores de idade) – que foram torturadas e violentadas no Complexo do Alemão por membros da força policial fluminense. O caso foi denunciado na Corte IDH no ano de 2015 e, dois anos depois, o Brasil foi sentenciado a diversas obrigações, entre elas a de investigar os casos de violência sexual, que ainda não haviam sido alvo do processo de investigação pela polícia.
“Os depoimentos das mulheres não foram tomados em ambiente seguro, e as vítimas sequer receberam atendimento médico e psicológico. Elas não foram tratadas como vítimas, mas como testemunhas das mortes ocorridas. A violência sexual foi naturalizada”, disse. Salise apontou para a contradição que não pode mais existir no Sistema de Justiça: a vítima de violência ser submetida a procedimentos incompatíveis com a questão de gênero e haver a obrigatoriedade no julgamento sob essa ótica.
Entre as determinações da Corte IDH para o Brasil no caso, constaram o oferecimento de tratamento psicológico e o pagamento de indenizações, custas e gastos, além de metas e políticas de redução da letalidade e da violência policial no estado do Rio de Janeiro. A Corte também orientou para a priorização de investigações de violações e assassinatos de meninas e mulheres.
“Se a violência está calcada no gênero, precisamos mudar em todos os níveis, com olhar voltado para a questão de gênero, para o protocolo recomendado pelas legislações brasileiras. O papel dos protocolos é aplacar preconceitos, oferecendo melhor acesso à justiça de todas as pessoas. Logo, temos de buscar que toda a rede, de maneira integrada, precisa ter esse olhar especial”, defendeu a conselheira.
Primeira a criar uma delegacia especializada em crimes contra a mulher no país, a delegada da Polícia Civil do Piauí (PCPI) Eugênia do Rêgo Monteiro Villa provocou debatedores e participantes do evento: “esse é um momento de ruptura. Chegou a hora de refletirmos sobre como estamos atuando.”
“Não basta inverter e colocar a mulher na centralidade. É preciso destruir lugares semânticos construídos ao longo da história. O protocolo possibilita identificarmos os elementos elaborados por um sistema penal genérico, normalizado e adotado como universal. O protocolo serve para nos orientar mesmo. Nos abre para dúvidas, para questionamentos”, disse.
A delegada citou, ainda, o assassinato de uma psicóloga por um paciente. A investigação, segundo a delegada, demorou para analisar o caso como feminicídio. O caso foi tratado como latrocínio a maior parte do tempo, de maneira errônea.
“Tomar posição é a primeira ação. Precisamos entender o patriarcado, que é uma estrutura que se desmembra em diversos aspectos, que se concretiza em práticas. E o patriarcado tem sua expressão processual, também. A desconstrução da imagem da vítima é uma delas”, disse a jurista e professora em Teorias Jurídicas Contemporâneas, a advogada Soraia da Rosa Mendes.
“É compatível com a dignidade da pessoa humana considerar que um homem pode tirar a vida de sua companheira por ciúme ou traição? E a resposta do Supremo foi direta: não o é. E por que isso demorou tanto tempo? A decisão é um resultado de um marco civilizatório. O patriarcado está na cultura jurídica”, afirmou a especialista.
Texto: Regina Bandeira
Edição: Jônathas Seixas
Agência CNJ de Notícias