O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em abril deste ano, uma resolução para aperfeiçoar a principal política de ação afirmativa do Poder Judiciário, o sistema de cotas para negros nos concursos públicos dos tribunais. A Resolução CNJ n. 457/2022 determinou que os certames tenham uma comissão para confirmar a condição de negra declarada pela pessoa candidata cotista no ato da inscrição. Os concursos para magistratura mais recentes revelam, no entanto, que o mecanismo antifraude já é uma prática corrente que acabou sendo incorporada pelo CNJ às novas regras nacionais para as seleções dos novos quadros da Justiça brasileira.
O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) foi um dos que se anteciparam à mais recente atualização das normas para concursos de magistrados e servidores. Desde 2018, os concursos para juiz substituto realizados pelo TJPR têm uma Comissão de Averiguação para atestar a veracidade da informação que cada candidato presta a respeito de sua raça. No concurso mais recente, iniciado em 2021, sete candidatos chegaram pela via das cotas raciais à fase da prova oral, quando a comissão de avaliação foi chamada a atuar.
A veracidade da autodeclaração entregue por seis candidatos foi confirmada pela comissão de avaliação. O sétimo preferiu não concorrer a uma das vagas das cotas raciais e acabou sendo aprovado na lista da chamada ampla concorrência, da qual participam todos que não tenham perfil – ou abram mão – de disputar uma vaga das cotas destinadas a pessoas com deficiência e pessoas negras. No resultado final do concurso, publicado no dia 5 de julho, quatro candidatos negros foram aprovados.
As cotas raciais como mecanismo de ingresso nas carreiras do Judiciário começaram a ser implantadas em 2015. À época, no entanto, o CNJ não especificou como os tribunais deveriam operacionalizar o sistema. Coube aos tribunais encontrar uma solução que garantisse efetivamente o direito de pessoas negras nos processos que selecionam os novos quadros da Justiça, prevenindo eventuais controvérsias a respeito do pertencimento racial de cotistas.
Em maio deste ano, o CNJ suspendeu – por decisão do Plenário no Procedimento de Controle Administrativo n. 0002371-92.20222.00.0000do, relatado pelo conselheiro Luiz Philippe Vieira de Mello – a posse de um candidato aprovado no concurso de juiz substituto do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) pelas cotas raciais, após uma comissão de especialistas e pesquisadores nomeada pelo próprio Conselho analisar o fenótipo do aspirante a juiz. A conclusão foi de que ele não fazia jus a uma das vagas das cotas para negros por não ter os requisitos exigidos pelo edital.
Para evitar a repetição de casos semelhantes, a Resolução CNJ n. 457/2022 exige que os tribunais instalem comissões de heteroidentificação na estrutura dos concursos, com integrantes que sejam “especialistas em questões raciais e direito da antidiscriminação”. Como a nova regra só se aplica a concursos abertos após a edição da resolução, o TJPR planeja ajustar a composição da sua comissão às exigências da norma nos próximos concursos, de acordo com o secretário da seleção, Carlos Eduardo Larcher dos Reis. A comissão de avaliação do mais recente concurso para juiz substituto do tribunal paranaense foi formada por uma magistrada que integrava a comissão do concurso e dois servidores negros da corte, incorporados a convite da organização.
Ajustes à vista
O Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO), cujo mais recente concurso para ingresso na magistratura entrou nas fases finais, estuda a instituição de uma comissão de assessoramento que seria encarregada de casos controversos. Segundo o juiz Cristiano Mazzini, integrante da Comissão de Avaliação, alguns candidatos já consultaram a organização do concurso sobre quais regras prevalecerão, diante da recente resolução do CNJ.
A ideia agora é convidar magistrados, acadêmicos e personalidades da sociedade civil que tenham experiência na área para produzir pareceres sobre determinados candidatos que sejam alvo de pedidos de impugnação, para auxiliar o trabalho da comissão de avaliação que já existe. Como foi formada antes da Resolução CNJ n. 457, no entanto, seus integrantes não foram designados necessariamente pelo perfil de atuação no campo dos direitos raciais.
“Essa comissão de assessoramento faria um parecer técnico dessas questões que seria então submetido à comissão de avaliação. Dessa forma, respeita-se o edital, no nosso entender, pois é o documento que rege a relação entre tribunal e candidato. Ao mesmo tempo, inovamos também acolhendo o que o CNJ determinou, pois compreendemos que é mais seguro ir ao encontro do que o CNJ estabeleceu”, afirmou o magistrado.
Desigualdade
Com a edição da Resolução CNJ n. 203/2015. pretendia-se cumprir o Estatuto da Igualdade Racial e reduzir a desigualdade racial nos quadros da Justiça. Cinco após a adoção das cotas nos concursos da Justiça brasileira, o CNJ realizou a “Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário” e identificou um aumento no percentual de magistrados negros que entraram na carreira.
O índice subiu em 2020 para 21%, um aumento em relação aos níveis anteriores a 2013, estimados em 12%. As transformações ocorridas na composição etnicorracial dos novos magistrados foram atribuídas ao sistema de cotas raciais, mas também à mudança na metodologia da pesquisa, que deixou de considerar a informação sobre a raça dos indivíduos mediante adesão voluntária e passou a apurá-la via autodeclaração no registro funcional.
O advento das comissões é importante para um país onde ainda se debate sobre pertencimento racial, de acordo com o juiz do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) Fábio Esteves. O magistrado acredita que os pareceres das comissões de heteroidentificação terão “efeito pedagógico” sobre as fraudes que ainda persistem. “Precisamos de critérios objetivos. Mesmo que tenham uma missão complexa, não podemos desconstituir a ação afirmativa.”
O juiz é uma das principais vozes na magistratura no debate sobre igualdade racial no âmbito do Poder Judiciário. Ao lado dos colegas do Coletivo Juízas e Juízes Negros, Esteves organiza desde 2017 o Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (Enajun).
Membros do movimento participaram, em 2020, do grupo de trabalho que o CNJ formou para discutir políticas judiciárias sobre igualdade racial na Justiça. Uma das recomendações foi incluir nas regras para concursos de ingresso na carreira uma comissão criada exclusivamente com a função de heteroidentificar o candidato negro por meio do fenótipo, método que fora chancelado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento sobre as cotas em universidades públicas, em 2012.
Uma das integrantes do grupo de trabalho foi a juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), Karen Luise de Souza. O TJRS também instituiu comissões de heteroidentificação em seus concursos após da criação do sistema de cotas no Judiciário e, junto com outros tribunais, inspirou o CNJ padronizar nacionalmente o procedimento de verificação da veracidade das informações raciais prestadas pelos aspirantes a juiz. No concurso iniciado em 2017, não houve recursos contra as decisões da Comissão de Aferição da Veracidade da Autodeclaração de Pessoa Negra.
A reserva de vagas para candidatos negros nos concursos de 2015, 2017 e 2019 ajuda a equilibrar a composição racial da magistratura estadual. De acordo com informações do TJRS, 805 dos seus 860 magistrados se declaram brancos, enquanto 25 se declararam pardos e cinco, pretos – além de 25 outros que não informaram a cor/raça. De acordo com os editais de abertura dos certames os candidatos cotistas concorreram a 39 vagas disponíveis.
Concursos em andamento
Os dois primeiros tribunais a lançarem concursos para juiz substituto após o CNJ atualizar as regras para cotas raciais na seleção foram o Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais (TJMMG) e o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC). De acordo com o desembargador do TJMMG Fernando Galvão da Rocha, por se tratar do primeiro certame para juiz desde 2009, a comissão organizadora buscou inspiração em outros tribunais para redigir seu edital. A maior referência foi o concurso do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), cujo edital original foi publicado em 2021, com previsão de análise da veracidade das informações prestadas nas autodeclarações, a ser feita por uma Comissão de Avaliação.
Segundo o magistrado, a comissão de heteroidentificação do tribunal será permanente, sem ter a atuação restrita ao certame. “Entendemos que o CNJ quer que os tribunais instituam uma comissão, não contratem especialistas, para não atuar apenas no concurso, mas promover uma mudança de cultura”, afirmou o desembargador, que preside a comissão do concurso.
A ideia é designar integrantes que serão capacitados em questões raciais e em direito da antidiscriminação, como determina a Resolução do CNJ. A portaria que instituir a comissão vai prever, em caso de necessidade, a contratação de especialista para produzir um parecer a respeito das candidaturas que sejam alvo de recurso de outros concorrentes. As inscrições estarão abertas entre 12 de setembro e 11 de outubro, com uma vaga reservada para candidatos negros.
A comissão do concurso do TJSC, aberto em maio, vai constituir a sua “Comissão de Avaliação” antes da terceira etapa, quando são realizados exames de saúde e psicotécnico, sindicância da vida pregressa e investigação social, além da entrega da documentação que comprove o atendimento aos requisitos do concurso, em termos de formação e experiência profissional. Os membros da comissão avaliadora confirmarão o registro definitivo das candidaturas aptas à próxima etapa, a prova oral. No concurso anterior, iniciado em 2019, a Comissão de Heteroidentificação foi composta por “servidores do Judiciário de reputação ilibada, distribuídos por gênero, cor e naturalidade, em atenção ao critério da diversidade”.
As 30 vagas abertas para juiz substituto serão distribuídas entre ampla concorrência (22), pessoas com deficiência (2) e negros (6). Quando forem preenchidas, os postos alterarão, em termos percentuais, a composição racial do quadro da magistratura do TJSC. Atualmente, a Justiça do estado conta com dois magistrados pretos e 12 pardos, conforme autodeclaração informada pela Coordenadoria de Magistrados do TJSC.
Parâmetro de representatividade
A Pesquisa sobre Negros e Negras no Poder Judiciário estabeleceu em 2020 um parâmetro para avaliar a representatividade da magistratura negra na Justiça. O parâmetro de inclusão calculava o número de negros e negras que estariam aptos a concorrer a uma das vagas de juiz substituto, de acordo com informações do Censo Demográfico de 2010 – visto que o Censo de 2020 ainda não foi realizado – e comparava o dado à parcela de negros entre os magistrados de cada tribunal.
No tribunal catarinense, a quantidade de magistrados e magistradas negro correspondiam a 2,6% do total da magistratura, enquanto o chamado parâmetro de inclusão indica que deveria corresponder a 7,9%. O TJSC foi um dos 16 tribunais da Justiça Estadual que apresentaram déficit de cota, assim como o TJRO e o TJDFT. Outros seis estão equivalentes à cota, ou acima, enquanto seis tribunais de Justiça não prestaram informações sobre a composição etnicorracial de seus quadros.
Considerando todos os tribunais de Justiça do Brasil, o parâmetro de inclusão é de 22,2%, enquanto o percentual de negros na magistratura atual é de 12,1%, cerca de 10 pontos percentuais a menos. Na projeção feita pelos pesquisadores, o Brasil deverá atingir o índice de 22% de negros na magistratura, mantido o atual sistema de cotas, entre 2056 e 2059.
Texto: Manuel Carlos Montenegro
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias