Rede de proteção precisa ser capacitada para lidar com questões da primeira infância

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O desconhecimento sobre o Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/2016) ainda perdura como um dos principais entraves para que a rede de apoio e o sistema de garantia de direitos consigam atuar com a efetividade esperada. Para mudar esse quadro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), especialmente por meio do Pacto Nacional pela Primeira Infância e pela edição de normativos, tem trabalhado para ampliar o conhecimento e a aplicação da lei nos casos concretos referentes à faixa etária abaixo de sete anos de idade.

A constatação foi o resultado da pesquisa qualitativa “Primeiras infâncias e formas de produzir famílias: narrativas de atores públicos sobre entrega voluntária, destituição do poder familiar, adoção e rumores de tráfico de crianças com até 6 anos de idade no Brasil”, realizada pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas de Desenvolvimento (PNUD). O estudo fez parte do “Diagnóstico da Situação de Atenção à Primeira Infância” (Eixo 3), uma das ações propostas pelo Pacto Nacional da Primeira Infância, coordenado pelo Conselho e que já possui mais de 300 signatários.

O levantamento ouviu 143 interlocutores do Sistema de Justiça, do Poder Executivo e da sociedade civil em 30 comarcas dos estados de Tocantins, do Pará, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, de Mato Grosso do Sul, de Mato Grosso, do Rio Grande do Sul, do Paraná, do Espírito Santo, do Amazonas, de Roraima e do Maranhão. O projeto buscou identificar e analisar a atuação dos profissionais e os fluxos dos processos judiciais sobre entrega voluntária, acolhimento, destituição de poder familiar, reintegração familiar e adoção.

Na maioria das regiões, o que se pode perceber é que a gestão das questões relativas à primeira infância se produz menos com referência ao Marco Legal, e mais como respostas práticas às demandas específicas: vagas em creches, em escolas, requisições por direito à saúde e acesso a medicamentos.

Para as pesquisadoras, essa abordagem pode ser otimizada e ampliada – de forma a garantir a plena implantação do Marco Legal – por meio de capacitações. Por um lado, espera-se que o Judiciário possa não apenas propor cursos e treinamentos sobre a Lei 13.257/2016, mas garantir a participação dos servidores e servidoras, magistrados e magistradas nessas oportunidades.

Por outro lado, também foi identificado o papel do Pacto Nacional como um incentivador da participação de outros signatários nesse empenho pela consolidação do Marco Legal em todas as esferas. Um exemplo foi o trabalho realizado pela Justiça de Goiás que, por meio de parceria e da adesão de órgãos do Executivo goiano ao Pacto, ampliou as vagas para a capacitação de conselheiros tutelares e assistentes sociais sobre o Marco Legal, em 2022, além da participação do Tribunal de Contas do Estado do Goiás (TCE-GO), que desenvolveu um painel com informações nacionais sobre os números de mortalidade materna, de partos cesáreos e de crianças, além da vacinação e mortalidade infantil, entre outros.

Segundo a pesquisadora do Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ/CNJ) Olívia Pessoa, os dados qualitativos do levantamento trazem subsídios para todas as áreas que lidam com crianças nessa faixa etária. “O Poder Judiciário entra como um fomentador das soluções e o Pacto Nacional é uma ferramenta importante nesse processo”.

As entrevistas demonstraram posicionamentos antagônicos pelos quais o Marco legal não é alcançado: para muitos interlocutores, a rede não funciona especialmente pela escassez do quadro funcional permanente, o que reflete no acúmulo de funções das equipes técnicas do Poder Judiciário, das Promotorias de Infância e Juventude, da Defensoria Pública e das Instituições de Acolhimento. Em algumas comarcas, foi identificado um bom funcionamento de equipes multidisciplinares, mas a rede interinstitucional não funcionava por causa do pouco diálogo e da disputa de poder.

Porém, há quem considere que os serviços intersetoriais de infância e juventude funcionam muito bem e os “insucessos” são justificados pela ausência de adesão das famílias aos investimentos das equipes. De acordo com a pesquisadora do PNUD Alessandra Rinaldi, essa abordagem desconsidera questões estruturais, uma vez que algumas famílias necessitam de proteção do Estado para cuidarem de suas crianças e adolescentes. Para ela, a rede de proteção ainda é frágil, sem diálogos institucionais eficazes, tendo ainda na pobreza um dos motivos mais presentes para a retirada das crianças de suas famílias.

Oportunidades de avanço

Nesse sentido, os especialistas apontaram oportunidades para a implementação do Marco Legal da Primeira Infância, como as práticas locais que priorizam o fluxo entre os diversos pontos da rede, os esforços para entender a complexidade da realidade vivida na busca pelo retorno das crianças às famílias de origem e a implementação de famílias acolhedoras como forma de garantir uma forma de acolhimento mais positiva.

No tocante à entrega legal, a pesquisa aponta a necessidade de treinamento das equipes multidisciplinares que fazem parte da rede de proteção, para que não haja julgamento moral da mulher que decide entregar a criança, mas também que ela não seja coagida a fazê-lo, sob o argumento de que o Estado poderia “salvar” a criança de uma situação de vulnerabilidade. “É preciso dar condições para que essa mãe esteja consciente de sua decisão e o faça por questões próprias e não por pressões externas, quer para manter, quer para entregar a criança”, explicou Olívia Pessoa.

Para padronizar esse procedimento, o CNJ publicou a Resolução n. 485/2023, que dispõe sobre o adequado atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho para adoção. Entre as sugestões apresentadas como resultado da pesquisa está a capacitação de profissionais de saúde e conselhos tutelares, especialmente, sobre as dimensões de gênero e os direitos reprodutivos, “de forma a garantir que mulheres possam gozar do seu direito de abdicar ao exercício parental sem que sejam expostas às diversas violações, tais como aleitamento compulsório, acusações morais, convocações religiosas e violência obstétrica”.

Quanto à adoção, a pesquisa destaca a importância do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA) e a necessidade de mantê-lo sempre atualizado e integrado. “O levantamento mostra como é importante que a justiça olhe cada caso de forma individualizada. Temos muitas crianças expostas à violência e à pobreza, que precisam de um acolhimento maior, uma rede de proteção mais ampla”, disse Olívia Pessoa. A pesquisadora destacou que os dados mostram a vulnerabilidade da família, mas também traz luz à ausência do Estado, que não proporciona o suporte social que deveria. “O Poder Judiciário, nesse caso, entra como agente que pode cobrar do estado essa atuação”.

A pesquisadora lembra ainda a importância das crianças quilombolas e de comunidades tradicionais, que estão invisibilizadas. Conforme os dados da pesquisa, falta atenção especialmente às crianças nas regiões de fronteira, que estão mais expostas à possibilidade de tráfico de crianças.

Marco Legal

A Lei 13.257/2016, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, fez mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e trouxe um conjunto de ações voltadas à promoção do desenvolvimento infantil, desde a concepção até os seis anos de idade.

O Marco Legal coloca a criança nessa faixa etária como prioridade no desenvolvimento de programas, na formação de profissionais e na formulação de políticas públicas, planos, programas e serviços. De acordo com evidências científicas, nos primeiros seis anos de vida são estabelecidas as bases das competências emocionais, cognitivas e físicas, associados à formação da arquitetura cerebral, sendo um período estratégico para a promoção do desenvolvimento humano, social e econômico. O Brasil é o primeiro país do mundo a promulgar uma legislação específica para valorizar a especificidade da primeira fase da vida.

O CNJ também instituiu a Política Judiciária Nacional para a Primeira Infância, a partir da Resolução n. 470/2022. A política assegura, com prioridade, os direitos fundamentais de crianças de zero a seis anos de idade no Poder Judiciário. A política destaca a abordagem restaurativa e a resolução consensual, com fluxos e protocolos mais apropriados para o atendimento às crianças; a adequação dos espaços do Judiciário para sua participação nas ações que lhe dizem respeito; a capacitação específica para escuta de crianças na primeira infância; e o reconhecimento da participação da magistratura no trabalho em rede como atividade inerente à função judicial para efeito de produtividade.

A medida propõe a integração operacional entre os órgãos dos Sistemas de Justiça e de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, leva em consideração as especificidades e a relevância dos primeiros anos de vida no desenvolvimento infantil e integral do ser humano. Também reforça uma série de outros avanços legais e iniciativas que buscam proteger direitos de crianças e adolescentes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Lei n. 8.069/1990), o Marco Legal e o Pacto Nacional.

Texto: Lenir Camimura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

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