Em uma manhã qualquer da semana, centenas de oficiais de Justiça saem às ruas para entregar intimações, ordens judiciais endereçadas a pessoas que devem comparecer ao Tribunal do Júri, na condição de testemunhas de julgamentos de assassinatos ou tentativas de homicídio. A missão aparentemente simples de localizar um endereço e entregar uma carta muitas vezes é abortada, pois as testemunhas não são encontradas. O responsável por boa parte dos “sumiços”, segundo magistrados e promotores públicos, é a criminalidade.
“Teve gente que, só pelo fato de ter de depor, foi assassinada. Em um caso, a intimação chegou à pessoa na sexta-feira. O júri seria na terça-feira da semana seguinte, mas no sábado a pessoa foi morta. Na segunda-feira, o irmão da vítima chegou aqui para me contar”, afirmou a juíza titular da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Jaboatão dos Guararapes (PE), Inês Maria de Albuquerque Alves.
O Tribunal do Júri é a instância do Poder Judiciário em que se julgam os supostos autores de homicídios ou de tentativas de homicídios. Ao contrário dos demais crimes, julgados pelo juiz de uma vara criminal, os crimes dolosos (cometidos com intenção) contra a vida são levados a júri popular. Um conselho de sentença composto por sete jurados convocados pela Justiça vota se um acusado é culpado ou inocente em relação ao crime que lhe é atribuído.
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Para se manter fora do alcance da Justiça, membros de gangues, de grupos de extermínio, de milícias, ou de facções criminosas, os homicidas procuram intimidar (chegam a matar, em alguns casos) potenciais testemunhas. Com 63 mil assassinatos cometidos no ano passado no Brasil, estatística do mais recente Anuário de Segurança Pública (2018), vizinhos, parentes e amigos dos mortos temem as ameaças. Para levar à Justiça os responsáveis por esse cenário de guerra, em todos os anos, desde 2014, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promove um mutirão nacional de julgamentos.
Esforço urgente e inglório
Na edição do ano passado do Mês Nacional do Júri, com os 27 tribunais de Justiça priorizando a causa dos crimes dolosos (com intenção) contra a vida, foram julgados 4.112 processos de pessoas acusadas de tirar (ou tentar tirar) a vida de outras. O esforço, embora urgente, parece inglório diante da quantidade muito maior de processos relacionados a crimes cometidos contra a vida que aguardam um desfecho nos tribunais: 285.261, segundo o último levantamento estatístico do CNJ.
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No final de 2017, nove mil desses processos aguardavam decisão nas varas dos tribunais do júri da Justiça do Rio de Janeiro, onde o domínio das organizações criminosas sobre as comunidades invade a alçada da justiça criminal. Segundo a promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho, que atua no III Tribunal do Júri da Comarca da Capital, as principais facções criminosas dominam 576 comunidades só no município do Rio de Janeiro. À população, muitas vezes em estado de extrema pobreza, só resta obedecer à lei do silêncio imposta pelos criminosos.
Silêncio imposto
“Não raro as testemunhas nos relatam extraoficialmente que não podem dizer tudo o que sabem porque foram ameaçadas e não têm outra opção; não possuem sequer condições financeiras de abandonar o local em que moram, nos quais vivem sob o domínio de ameaças, execuções, torturas, homicídios, ‘leis próprias’ impostas pela organização criminosa. Em vários casos, as testemunhas desaparecem”, afirmou a promotora Carmen Eliza. O resultado é que poucas são as pessoas que já se dispõem a testemunhar à polícia, “motivados pela dor da perda”. Quando são instadas a depor diante de um juiz, para que a Justiça obtenha uma prova testemunhal, não conseguem repetir o que viram e ouviram no dia do crime.
A promotora lembra o caso dramático de uma mãe que, após presenciar a tortura e morte de um filho, reconheceu os assassinos diante da autoridade policial, pois todos moravam na mesma comunidade. Em juízo, no entanto, foi forçada pelos criminosos a negar o que vira. “Seu outro filho havia sido sequestrado pela quadrilha que assassinara seu filho, dois dias antes do seu depoimento. O desespero daquela mãe em negar a autoria evidenciou para todos os presentes a falta de liberdade do seu testemunho. A mãe foi conduzida ao Tribunal do Júri pela própria família dos réus”, disse a promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho.
Durante a sessão do tribunal do júri, a juíza responsável pelos júris em Jaboatão dos Guararapes, Inês Maria de Albuquerque Alves, já viu testemunha passar mal e desmaiar. “Tem gente que muda a versão (em relação ao primeiro depoimento prestado à polícia). No depoimento, nós ainda tentamos trocar a ordem dos depoentes para ver se a pessoa se acalma. Oferecemos água e lanche. Nos colocamos no lugar deles e entendemos, mas já houve caso de o Ministério Público pedir a prisão da testemunha porque a mudança de versão ficou gritante demais”, afirmou a magistrada.
Há 12 anos atuando na vara da comarca do Grande Recife, a juíza viu uma transição na motivação dos assassinatos, que migrou dos interesses de grupos de extermínio para quadrilhas inimigas do tráfico de drogas. Jaboatão dos Guararapes registrou média anual de 227 homicídios com arma de fogo, de acordo com o Mapa da Violência 2016 – homicídios por armas de fogo no Brasil.
Parece filme
Mesmo em uma unidade da federação considerada relativamente segura, segundo o promotor da 1ª Promotoria de Justiça do Tribunal do Júri de Brasília, Leonardo Jubé, testemunhas em potencial ficam expostas a pressões, comentários, abordagens na rua e, em alguns casos, correm risco de morte por causa do que sabem.
“Às vezes acusados pelo mesmo crime que se dispõem a colaborar com a Justiça, sobretudo quando são pessoas em situação econômica pior, são confrontados na rua. Tivemos exemplo relativamente recente de um colaborador da Justiça que, mesmo envolvido com a criminalidade, resolveu entregar o mandante e esclarecer todos os fatos de um crime. Foi alvo de tentativa de homicídio. Só sobreviveu talvez por um milagre. É uma realidade concreta, parece cena de filme, mas não é”, disse Jubé.
Poder das facções
A prática generalizada da intimidação de testemunhas também ocorre no estado de São Paulo, apesar de uma queda recente no número de homicídios, de acordo com o promotor Rogério Leão Zagallo, do Ministério Público estadual. “O crime está cada vez mais violento. Os homicídios estão servindo como recados para avisar. Cada vez diminui a vontade de colaborar das testemunhas. Já ouvi de uma testemunha: ‘eu tenho filho, mulher, você não vai prender a quadrilha ou acabar com o tráfico’”, disse o promotor Leão Zagallo, da 5ª Vara do Júri de São Paulo há 14 anos.
Muitos dos 1,3 mil julgamentos do júri popular nos quais o promotor Leão Zagallo atuou foram afetados pelos efeitos da lei do silêncio imposta pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), sobretudo depois de 2006. Depois do episódio que ficou conhecido como “Salve Geral”, quando a facção criminosa fundada nos presídios paulistas promoveu uma série de atentados contra agentes da segurança pública, “começamos a julgar réus do crime organizado e a jogar luz sobre o problema. Aumentou a preocupação com o crime organizado, que até então era julgado por causa de brigas por pontos de tráfico”, disse o promotor.
No julgamento de dois dos principais cabeças da organização, o poder da criminalidade pesou não só sobre as testemunhas. “Em dois júris populares, condenamos o 2º e o 3º principais líderes do PCC: Gegê do Mangue e Abel Pacheco Andrade, conhecido como Vida Loka. Mas para levá-los ao Fórum da Justiça Federal de Mossoró/RN, onde foi realizada a videoconferência, foi um ‘parto’. Eles estão presos na Penitenciária Federal de Mossoró porque não há nenhuma condição de voltarem ao sistema prisional de SP, onde são considerados pelas autoridades de segurança pública ‘presenças nefastas’. Tivemos de convencer os agentes da Polícia Federal a trasladá-los ao Fórum da Justiça Federal. Havia medo de resgate no meio do caminho”, disse o promotor.
Intimidação amplia alcance
O PCC está expandido seus negócios ilegais para além das fronteiras de São Paulo – o grupo tem protagonizado disputas com rivais no Paraguai. Um dos estados afetados pelo processo foi a Bahia, segundo o promotor que atua no Núcleo do Júri de Salvador, Davi Gallo. Atualmente, o estado tem seis municípios no ranking das 20 cidades com maior número de assassinatos com arma de fogo no país, de acordo com o Mapa da Violência 2016. Além das testemunhas, até jurados são alvo de intimidações.
“Não só as testemunhas são coagidas, mas também os jurados, apesar do sigilo do voto (do conselho de sentença). O jurado é intimidado com um olhar. Durante a fala, o advogado também deixa claro quem é o seu cliente. Todos sabemos que os criminosos estão nas ruas. Isso faz crescer a impunidade”, afirmou o promotor, que já atuou em cerca de 1,1 mil julgamentos desde que entrou no Ministério Público, em 1995.
O raio de alcance das intimidações atingiu o próprio promotor. Alertado pelo Serviço de Inteligência do Ministério Público da Bahia, Gallo descobriu que sua morte era planejada e discutida pelo crime organizado dentro do presídio e nas redes sociais. “Ando escoltado com dois agentes de segurança desde que levamos a julgamento nove PMs por causa de uma chacina em 2015, conhecida como a Chacina de Vila Moisés, em Salvador, em que mataram 12 pessoas. Já deixei de ter vida há muito tempo. Não tenho liberdade de ir à paia”, afirmou o promotor Davi Gallo.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias