A primeira edição do Curso de Formação em Prevenção e Combate a Tortura e Inspeções Prisionais, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), foi concluída nesta semana. Ao longo de três dias, representantes do Judiciário, Legislativo, Ministério Público, Defensoria Pública, peritos e organizações da sociedade civil trocaram experiências em temas como fluxos para casos de tortura e maus-tratos de pessoas encarceradas, normativas nacionais e internacionais e vulnerabilidades relacionadas aos marcadores da diferença como gênero e raça. A expectativa é de que eventos semelhantes sejam replicados em outros estados.
A formação realizada na Escola Superior da Magistratura do Ceará (Esmec) é um dos desdobramentos da mobilização protagonizada pelo Judiciário local após inspeção do CNJ realizada em 2021 , quando um grupo de trabalho foi instituído para coordenar e acompanhar as ações do Plano Emergencial do Sistema Prisional do Estado. Em abril, o TJCE aprovou resolução que estabelece e regulamenta o fluxo administrativo de recebimento, processamento e monitoramento de notícias de tortura ou de maus-tratos no âmbito do Judiciário.
O presidente do TJCE, desembargador Abelardo Benevides Moraes, enfatizou a necessidade de a magistratura e demais operadores do direito atuarem proativamente na promoção de uma cultura de paz e respeito aos direitos humanos. “Trabalhar esses valores, essa cultura da paz e de respeito ao outro, é o que nos cabe aqui. Nesse sentido, temos que ser proativos, tratar em várias ambiências e com todos os sujeitos envolvidos. A mensagem que deixo é de comprometimento, continuidade e união”.
Coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, Luís Lanfredi destaca a importância do evento inédito. “Não estamos aqui falando de algo apenas no campo das intenções, mas do próprio cumprimento da lei. Cito como exemplos a Convenção Interamericana Para Prevenir e Punir a Tortura e a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, internalizadas pelo Brasil em 1989 e 1991, respectivamente. Ambas consideram que a tortura está diretamente relacionada com a atuação ou omissão do Estado”, avalia, citando ainda o Protocolo Facultativo à Convenção Contra a Tortura das Nações Unidas, internalizado em 2007.
A formação teve o apoio técnico do programa Fazendo Justiça, coordenado pelo CNJ em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública para acelerar respostas no campo da privação de liberdade. “Esse curso inaugura uma fase ainda mais qualificada de atuação do DMF, do programa Fazendo Justiça, no sentido de olharmos para a prevenção e combate à tortura de forma integrada. Essa troca de experiências entre operadores do sistema é fundamental para uma atuação qualificada de todos os sujeitos”, apontou a juíza auxiliar da Presidência do CNJ com atuação no DMF, Karen Luise Vilanova. “Saímos daqui com um potencial para a replicação desse curso em outras unidades da federação”.
Raça e a centralidade dos marcadores da diferença
A centralidade da questão racial no enfrentamento à tortura foi apontada pelo juiz auxiliar da Presidência do CNJ com atuação no DMF Edinaldo César Santos Júnior. “Temos insistido na perspectiva que a questão racial não é transversal, mas ela é central. Por isso essa é uma oportunidade tão relevante para dialogar com operadores do direito, com aqueles que fazem o controle externo da atividade policial, com quem está nas audiências de custódia, com quem realiza inspeções nos estabelecimentos de privação de liberdade e com todos e todas que tem o dever de agir em razão da tortura”. De acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 67,4% das pessoas inseridas no sistema carcerário brasileiro são negras. Essa população também é a mais vitimada em intervenções policiais, somando 84% dos casos.
Diretor de Litigância e Incidência da Conectas Direitos Humanos, Gabriel Sampaio ressaltou que a tortura e a repressão estão presentes desde o início do projeto nacional brasileiro, e que estereótipos racistas seguem perpetrados pelo Estado. “Visitar a nossa história é importante para nos afastarmos das armadilhas criadas ao longo dos séculos, para nos confundir e justificar injustiças raciais”. Ele ressaltou a importância de compreender a profundidade desses problemas de forma a se evitar armadilhas que possam justificar a inação do poder público, ou minimizar a necessidade de enfrentá-los.
Abordagens múltiplas
Presidente do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Marina Araújo destacou que a iniciativa do TJCE é um importante passo para a implementação do Protocolo de Istambul no contexto local. “Juntando esses atores temos possibilidades de implementar fluxos e protocolos, bem como de dialogar conjuntamente sobre como enfrentar e combater a tortura no estado do Ceará. Além disso, foi um momento para reafirmar a necessidade de implementação do Sistema Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e da criação do Mecanismo Estadual”.
Perito forense e professor da Universidade de Brasília, Malthus Galvão destacou que a prática da perícia deve avançar com a tecnologia, garantindo que os laudos sejam digitais e acessíveis a todos. “A melhoria das condições técnicas é importante, mas não é o único fator determinante. É necessário cobrar o cumprimento dos protocolos e garantir a consistência e documentação adequada dos exames”.
O promotor do Ministério Público do Amazonas João Gaspar Rodrigues defendeu a capacitação como forma de enfrentamento a quadros institucionalizados. “Precisamos capacitar continuamente os profissionais de várias instituições para um combate efetivo da tortura, uma prática odiosa, anticonvencional, inconstitucional, ilegal e criminosa, que agride o Estado de Direito Democrático”.
Qualificação em foco
As inspeções realizadas em diversos estados desde 2021, assim como o anúncio recente da retomada dos mutirões carcerários pela ministra Rosa Weber, fazem parte dos esforços do CNJ para oferecer instrumentos que qualifiquem a atuação do Judiciário no contexto penal. Por meio do Fazendo Justiça, o DMF também tem atuado em parceria com a Associação de Prevenção à Tortura para atualizar instrumentos de inspeções judiciais em estabelecimentos prisionais, em ação que ainda prevê a atualização do Cadastro Nacional de Inspeções nos Estabelecimentos Penais (CNIEP).
Texto: Natasha Cruz
Edição: Débora Zampier
Agência CNJ de notícias