Há dois anos, a prática de submeter crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de crimes a reviverem lembranças dos traumas sofridos, em processos judiciais ou administrativos, é tipificada como violência institucional, de acordo com a Lei 13.431/2017. Mesmo assim, o processo de revitimização ainda pode ser identificado em antigos modelos de escuta e de depoimentos usados no país, explicou o secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Richard Pae Kim.
Para combater essa prática agressiva e unificar o acolhimento a jovens e crianças, o CNJ, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil (Unicef) e a Childhood Brasil, lançou nesta quarta-feira (15/7), em um webinar, o Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense com Crianças e Adolescentes, um documento que detalha de forma didática, mas aprofundada, os estágios a serem preservados para uma entrevista eficaz e protetiva.
O protocolo agora será disseminado nas redes de proteção que atuam para garantir o apoio e resguardar os direitos desses pequenos brasileiros vítimas de agressão ou abuso ou ainda que tenham presenciado atos de violência, etapa que Richard Pae Kim classificou como “necessidade inadiável”.
“A conjugação do esforço de todos em prol da adequada atenção e proteção dos direitos das crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, em âmbito nacional, é que transformará positivamente a vida de cada uma dessas pessoas, garantindo-lhes, nos momentos difíceis, o adequado acolhimento e a realização da Justiça”, afirmou o secretário.
O entendimento de Pae Kim foi compartilhado pela presidente da Childhood Brasil, Roberta Rivellino, que definiu a ferramenta como uma estratégia complexa e inovadora para a escuta especializada e depoimento especial de crianças e adolescentes. “O protocolo brasileiro é um instrumento que pode facilitar o relato dos fatos ocorridos às autoridades responsáveis pela proteção, investigação e judicialização dos casos de violência. Porém, a efetividade do mesmo somente será assegurada se garantirmos o seu conhecimento.”
A chefe de Proteção da Criança do Unicef Brasil, Rosana Vega, declarou que o lançamento do protocolo reflete o compromisso de preservar os menores contra todas as formas de violência. “Ele representa uma conquista desses esforços e traz com ele o potencial de fortalecer a proteção das crianças e adolescentes que têm contato com o sistema de Justiça.”
Capacitação
Richard Pae Kim adiantou que, no início de agosto, o CNJ oferecerá mais um curso de formação de entrevistadores para servidores do Judiciário e magistrados. A capacitação deverá ser aberta aos demais profissionais no fim do ano. A iniciativa, informa o secretário, integra as ações adotadas pelo órgão para aprimorar o sistema de garantia de direitos das crianças e adolescentes.
Logo após o lançamento do protocolo nacional, o especialista em Violência Doméstica Contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP) e gerente de Advocacy da Childhood Brasil, Itamar Gonçalves, apresentou as principais ações realizadas nos últimos anos para contribuir ao enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes.
De acordo com ele, a partir das análises realizadas, foi possível identificar três grandes gargalos nas respostas da sociedade brasileira a esse tipo de agressão. Os empecilhos, avaliou o especialista, abrangem a falta de uma política de prevenção primária à violência, especialmente à violência sexual; a falta de integração dos serviços ofertados na rede de proteção, que acaba por revitimizar crianças e adolescentes; e os baixos índices de responsabilização dos crimes sexuais, que contribuem para a perpetuação do ciclo de impunidade.
Gonçalves acrescenta ainda que o trabalho conjunto desenvolvido com o CNJ e o Unicef Brasil resultou na implementação de um currículo sobre o tema para capacitar profissionais do sistema de Justiça e da rede de proteção, disponibilizado em uma plataforma de ensino a distância, e no aumento do número de projetos de depoimentos especiais instalados nos Tribunais de Justiça Estaduais.
“Estimamos que hoje tenhamos algo em torno de 900 salas já em funcionamento em nosso país. Esses resultados vêm gerando impactos como a mudança no modus operandi do sistema de Justiça, de um modelo centrado na produção de provas para um modelo alternativo, centrado na proteção da criança.” O desafio, agora, aponta Itamar Gonçalves, é apoiar a aplicação da lei em todos os municípios, especialmente, durante a pandemia, “quando a convivência diária pode resultar em um aumento nos níveis de violação dos seus direitos”.
Integridade dos depoimentos
Responsável por uma pesquisa qualitativa e quantitativa para avaliar a eficácia do Protocolo no âmbito judicial, Benedito Rodrigues dos Santos, doutor em Antropologia pela Universidade de Berkeley, na California (EUA), e consultor da Childhood Brasil, destacou a relevância da iniciativa. “O Protocolo é uma técnica de entrevista que facilita a identificação do fato penal, quando ele realmente aconteceu, sem revitimizar a criança ou o adolescente.”. Ao apresentar os resultados das 57 entrevistas realizadas, ele ressaltou que as crianças se sentiram muito mais tranquilas após passar pelo Protocolo. “Elas saíam relaxadas, como se tivessem desabafado”, comentou.
Na opinião de Marleci Hoffmeister, assistente social e chefe de serviço da Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), o protocolo faz a diferença para a integridade do depoimento. “Nós apostamos muito, porque ele é flexível e eficaz tanto com crianças como com adolescentes, em qualquer idade”, completou.
A promotora de Justiça e coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Educação, Família e Sucessões do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Denise Casanova Villela destacou que “as crianças e adolescentes nunca foram ouvidas em nada, nem em políticas públicas que envolvem os seus direitos” e lembrou que o momento de apresentação do protocolo não poderia ser melhor, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente está completando 30 anos em 2020.
Muito citado e lembrado como idealizador e precursor do depoimento especial, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) José Antonio Daltoé chegou a se emocionar durante a sua fala ao se lembrar de uma estudante de direito que lhe entrevistou e agradeceu. Ela contou que sua vida mudou aos 10 anos graças ao depoimento especial. “Esse protocolo não está finalizado completamente. Ele ainda será aperfeiçoado. Mas é um começo”, disse. Ele ressaltou que é importante capacitar todos os agentes envolvidos nos processos e não apenas o corpo técnico. “Ele tem que ser ensinado nas faculdades de direito. Cobrado nos concursos públicos. Tem que ser divulgado para todos”, enfatizou.
Capacitação
O chefe do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Servidores do Poder Judiciário (Ceajud), Diogo Ferreira, anunciou, ao final do encontro, que o Ceajud irá lançar, no dia 5 de agosto, as inscrições do curso on-line para capacitação de entrevistadores, já utilizando o novo protocolo. Serão 150 vagas, inicialmente restritas a servidores do Judiciário. “Como será a nossa primeira turma a distância, fizemos essa restrição de público. Depois que validarmos o curso, iremos abrir para outros órgãos e instituições”, afirmou. Serão 40 horas de curso, divididos em seis módulos.
Paula Andrade e Roberta Paola
Agência CNJ de Notícias
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