Projeto literário garante remissão de pena e recupera presos em Joaçaba/SC

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Enquanto trabalham na cozinha, mulheres aproveitam para encenar a tragédia “Othello”, de Shakespeare, para melhor compreender a obra. O inusitado é que não são atrizes ou estudantes, mas detentas do Presídio de Joaçaba, em Santa Catarina. Assim como outros 120 presos do estabelecimento, elas participam do projeto “Reeducação do Imaginário”, em que os presos têm a oportunidade de ler clássicos da literatura universal e com isso obter a remissão de dias de suas penas. A prática se insere no contexto da Justiça Restaurativa, incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do Protocolo de Cooperação para a difusão da Justiça Restaurativa, firmado em agosto com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB).

Implantada no Brasil há cerca de 10 anos, a Justiça Restaurativa consiste na adoção de medidas voltadas a solucionar, de forma alternativa, situações de conflito e violência mediante a aproximação entre vítima, agressor, suas famílias e a sociedade na reparação dos danos causados por um crime ou infração, podendo ser aplicada em qualquer momento do cumprimento da pena. A introdução da prática da Justiça Restaurativa nas Centrais de Conciliação e Mediação dos Tribunais atende à Resolução CNJ n. 125, que estimula a busca por soluções extrajudiciais para os conflitos. A norma determina, por exemplo, que os tribunais brasileiros criem núcleos permanentes de métodos consensuais de solução de conflitos formados por magistrados e servidores.

A prática é um conceito amplo, que tem como base a busca das causas da transgressão e a recuperação do transgressor para a sociedade, visando impedir novos crimes. É este o objetivo do projeto “Reeducação do Imaginário”, criado pelo juiz Márcio Bragaglia, titular da Vara Criminal de Joaçaba, em 2012, e inspirado no trabalho do filósofo Olavo de Carvalho. Dos 200 presos que já participaram do projeto e cumpriram a totalidade de sua pena, houve apenas um caso de reincidência.

Os clássicos são selecionados pelo juiz levando em conta a relevância do assunto no contexto em que vivem os apenados: a relação entre responsabilidade pessoal, liberdade de escolha, condições sociais e consequências dos atos praticados. O primeiro livro foi Crime e Castigo, de Fiódor Dostoievski. Os presos participam do projeto voluntariamente e são avaliados em relação à leitura que fizeram por meio de provas orais realizadas pela equipe do juiz, que duram cerca de 30 minutos. Já foram realizadas 720 provas e o projeto está em seu 16º livro.

“Não subestimo a competência deles. Não dou livros de autoajuda, só clássicos da literatura”, diz o juiz Márcio Bragaglia. De acordo com o magistrado, a baixa escolaridade dos presos não tem sido obstáculo para a leitura das obras, que, muitas vezes, são distribuídas junto a dicionários. Algumas vezes, segundo Márcio, os detentos não têm uma compreensão imediata do que leram, mas acabam assimilando aquele aprendizado em situações vividas posteriormente. “Recentemente me surpreendi com uma das presas que não tem o segundo grau e leu mais de 10 livros em seis meses, tendo um ótimo resultado na avaliação”, diz.

Prazo de leitura – Cada livro é estabelecido por uma portaria, que define o tempo máximo de leitura e a remissão da pena, condicionada a avaliação posterior. A leitura de “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann, de cerca de 840 páginas, equivale a sete dias a menos de pena, e “Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister”, de Goethe, seis dias. Já “Ficções”, de Jorge Luis Borges, selecionada por tratar-se, conforme edital da Vara Criminal de Joaçaba, de “uma importante obra de formação da imaginação, contendo profundas reflexões sobre a experiência e a inteligência humanas, as noções de tempo, eternidade, infinito”, concede ao preso dois dias de remissão, caso seja aprovado na prova oral.

“Ao terminar de cumprir a pena, muitos me pedem orientações para continuar a ler”, diz o juiz Márcio. Na opinião dele, o projeto não visa apenas a remissão da pena, mas a transformação dos presos em pessoas melhores e que possam conviver pacificamente em sociedade. “O projeto remete a Platão, para quem a ordem de uma sociedade é reflexo da ordem da alma”, acredita o juiz.

Os livros são adquiridos nas editoras por meio de verbas de transação penal, ou seja, aquelas pagas por pequenos infratores em acordo com o Ministério Público.

Os participantes do projeto leem cerca de 10 livros por ano e as obras têm sido tema de conversas e debates no presídio, inclusive encenações, como aquela presenciada na cozinha do estabelecimento, em que uma das presas fazia o papel de Iago, outra de Desdêmona e uma terceira de Othello. Após a encenação, as presas chegaram à conclusão de que, embora Iago tenha preparado uma teia de intrigas e falsas pistas que redundaram nos atos implacáveis de Othello, foi deste a verdadeira responsabilidade e a grande culpa. Avaliam também que, se o ambiente influencia os atos, não os determina, restando sempre a responsabilidade de cada um ao final.

Luiza de Carvalho
Agência CNJ de Notícias