A mais antiga região administrativa da capital federal protagoniza iniciativa inovadora, apoiada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de levar Justiça Restaurativa às escolas. A comunidade escolar do Centro de Ensino Fundamental 1 (CEF 1) de Planaltina se prepara para aprender a transformar os conflitos existentes, vislumbrando o potencial de crescimento e aprendizado a partir do conflito para o fortalecimento da comunidade escolar.
Carinhosamente conhecida como Centrinho, a instituição de ensino que recebe mais de 1 mil alunos do 6.º ao 9.º ano, sendo 150 alunos com deficiência, é a primeira do Distrito Federal a aderir ao proposto pela parceria entre o CNJ, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) e a Secretaria de Educação do DF.
Ainda em 2022, quando firmada a parceria, teve início a sensibilização de algumas escolas por meio de convite à participação no curso de formação teórica, oferecido pelo Comitê Gestor da Justiça Restaurativa do CNJ, conforme rememora a juíza federal do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF3) e coordenadora do projeto, Katia Lazarano Roncada.
Ela explica que a Justiça Restaurativa possibilita a transformação da ambiência escolar, as relações de gestores, professores, servidores e alunos, bem como de toda a comunidade do entorno, proporcionando que a convivência seja pautada pelos melhores valores humanos, como o respeito, a confiança e a honestidade, entre outros, sendo todos corresponsáveis por essa construção. “É muito importante que cada um se sinta pertencente e respeitado: isso é premissa de uma convivência saudável”, defende.
Assim, tendo a pressuposto de que a participação na Justiça Restaurativa é sempre voluntária e que houve grande adesão pela Escola CEF 1 de Planaltina, ali se focou o desenvolvimento inicial do projeto. Sem prejuízo, novas escolas estão sendo convidadas, num processo de crescimento orgânico, para a formação teórica que será novamente oferecida.
Com a conclusão do curso teórico, teve lugar o curso de formação em Processo Circular, uma das práticas da Justiça Restaurativa, o qual foi vivenciado no ambiente da própria escola, por representantes do CNJ, do TJDFT, de professores, professoras, servidores e servidoras do CEF 1 de Planaltina, no mês de março. “Considero que a formação prática deve ser, sempre que possível, presencial, a fim de se alcançar a profundidade buscada”, enfatiza a juíza federal.
Mais do que apontar o que é certo ou errado, a proposta trazida pela parceria entre as instituições do Poder Judiciário busca construir justiça como um valor, resume a instrutora de Processos Circulares, Sabrina Paroli, que participa do projeto.
À frente da formação da prática, a profissional veio de São Paulo para dividir com o público do CEF 1 a experiência que construiu em mais de 16 anos atuando com Justiça Restaurativa. Sua experiência teve início com o primeiro projeto-piloto de Justiça Restaurativa e Educação, em 2006, o chamado “Projeto Justiça e Educação em Heliópolis e Guarulhos: uma parceria para a cidadania”, que foi realizado no território de Heliópolis, a maior favela da capital paulista. A instrutora cita que ali já se entendia a lógica interinstitucional e intersetorial proposta para a implantação da Justiça Restaurativa nas escolas e contou com a parceria da Secretaria da Educação, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e de outras instituições.
A profissional explica que a Justiça Restaurativa tem um caminho diferente para a construção do justo. “Procuramos desvelar as violências, tratar os conflitos como potência de transformação, para que as pessoas tenham consciência e se responsabilizem pelas suas relações”, detalha. A instrutora reforça que as práticas restaurativas conduzem os envolvidos a compreenderem que todas e todos são importantes, que é preciso cuidar das relações e de si próprio.
Restauração em ambiente escolar
Para chegar a essa conscientização, a prática usada inicialmente na escola é o Processo Circular. No ambiente escolar, os participantes ficam em formato circular. Porém, não se trata de uma roda de conversa, mas sim de um espaço intencional e estruturado para sustentar assuntos difíceis, alerta a instrutora. “Traz elementos importantes para construção da convivência, em que cada participante tem oportunidade de falar, de ser escutado e de escutar o outro.”
No desenvolvimento do projeto haverá oportunidade para que sejam abordadas violências que alcançam a todos, propondo espaços de reflexão e criação para novas formas de convivência. “Eles também terão a oportunidade de tratar de questões como racismo e gênero, que são violências estruturais muitas vezes difíceis de abordar, mas presentes no nosso cotidiano”, completa Sabrina.
Pós-pandemia
Ao aceitar o convite do CNJ e do TJDFT, a diretoria do CEF 1 não tinha ideia exata do que se tratava. “Acreditávamos somente que contribuiria para a resolução de conflitos e a valorização da cultura de paz, tão valiosa para a nossa comunidade”, assegura a supervisora pedagógica do centro de ensino, Eucleia Pereira Gomes. Ela relata que, após a pandemia, a relação entre os alunos não estava tão amigável. “O longo período de confinamento gerou agressões tanto com palavras quanto com ações.”
Ao participar das formações teórica e prática, ela percebeu que era uma ação transformadora para toda a comunidade escolar. “É um aprendizado enriquecedor e agregador não só para a nossa instituição de ensino como para quem está envolvido com ela”, avalia. Inspirada pela troca de experiências, a supervisora pedagógica planeja até rever o projeto pedagógico da instituição e fazer intervenções em atividades como reuniões de pais e do conselho de classe. “Faremos o que for preciso para colocar em prática, de acordo com a nossa realidade e para permanecermos uma escola pacífica”, assegura.
O que ainda é levado como conhecimento e para formação dos futuros facilitadores na escola de Planaltina é vivido diariamente na prática pela coordenadora da Justiça Restaurativa no TJDFT, a juíza Lília Vieira, só que entre as quatro paredes do tribunal. Juíza desde 2003 na Justiça estadual da capital federal, ela assumiu a coordenação do Núcleo de Justiça Restaurativa em 2022.
Ela avalia que começar a transposição da Justiça Restaurativa para o ambiente escolar demonstra a potência da proposta. “A escola é um espaço permanente de convivência e acompanhamos notícias da dificuldade de diálogo entre professor e aluno e entre os alunos. Por isso, é o ambiente propício para essa forma de tratamento do conflito”, defende.
A magistrada assegura que a troca de experiências, inédita para o TJDFT e a comunidade escolar, proporcionou o compartilhamento de conhecimentos em uma semana intensa. “Foram 40 horas em que trouxemos nossa prática e aprendemos com os professores. No tribunal, atuamos mais com adultos, recebemos os processos ligados aos juizados especiais criminais. Aqui, estamos pensando em crianças e adolescentes que convivem diariamente no espaço que é a escola”, explanou a juíza Lília.
Ela considera essa iniciativa muito rica. “Tivemos um olhar diferente sobre a Justiça Restaurativa dentro da escola, proporcionado pelo contato com os professores e alunos”, diz a coordenadora da Justiça Restaurativa no TJDFT. Na expectativa de ver o projeto ampliado, ela acredita que “a parceria do CNJ é essencial para essa expansão, capaz de desenvolver frutos que não virão imediatamente, mas podem trazer outras formas de solução dos conflitos, capaz de olhar os envolvidos e entender as peculiaridades de cada pessoa”, idealiza a juíza.
Sacerdócio
A capacidade de transformação que a Justiça Restaurativa traz é capaz de mudar a vida das pessoas, assegura o servidor do TJDFT Adoniram Pereira Ramos. Desde 2018, ele atua dentro do tribunal como facilitador da prática e participa do projeto de levar a metodologia para o CEF 1 de Planaltina. “Mais do que um ofício é quase um sacerdócio para mim. Eu me tornei uma pessoa mais solidária, presente, aprendi a escutar primeiro e depois falar”, garante.
O servidor entende que a transformação almejada pela Justiça Restaurativa deve começar pelo próprio facilitador para alcançar outras pessoas. Ele participa do círculo levando sua experiência com a prática. “Atuamos em conferência entre vítima e ofensor, naqueles crimes de menor gravidade e em alguns casos de médio até alto potencial ofensivo.”
Esse trabalho é feito dentro do tribunal em processos criminais. Para ele, a oportunidade de estar na escola, abrindo um novo caminho para esse trabalho, é um privilégio. “A Justiça Restaurativa é como um rio, que nasce pequeno e, no seu curso, vai se desenvolvendo e passando por diferentes ambientes até se tornar caudaloso, forte.”
Adoniram diz que não há um conceito dentro de uma caixinha para a Justiça Restaurativa. Trata-se de um conjunto de princípios e valores colocados em prática a partir do que o ser humano tem de melhor. “Na verdade, quando chegamos a um acordo é a cereja do bolo. O mais importante é o processo pelo qual passamos e capaz de transformar as pessoas”, ilustra.
Atenta à experiência com o círculo, a professora guia e intérprete Marineide Castro personifica o que é alcançar seu objetivo de vida por meio da profissão. Ela espera conseguir que um dos alunos melhore a convivência com os colegas e os familiares. Desde 2017, a professora abriu espaço para que Carlos, aos 37 anos de idade, com esquizofrenia, deficiência auditiva e visual, retornasse ao ambiente escolar.
As dificuldades de acompanhamento de Carlos, que vivia à margem de qualquer relação humana, inclusive com os familiares, motivaram-na a buscar melhor qualidade de vida para ele. “Quando fui à sua casa, não sabia como auxiliar, depois de pensar muito, percebi que o melhor lugar para a sua ressocialização seria na escola”, diz a educadora.
De lá para cá, tanto ela como os demais integrantes da comunidade escolar percebem os avanços do aluno que era considerado um problema para a família e a sociedade. Ao conhecer os princípios e as práticas da Justiça Restaurativa, Marineide planeja levar esse conhecimento para melhorar o convívio de Carlos com os seus familiares. “Trouxe a possibilidade de acolher essa família, para que não se sintam sozinhos e tenham a confiança de contar com toda a comunidade escolar”, planeja.
Ano pela Justiça Restaurativa
O CNJ declarou 2023 como o Ano da Justiça Restaurativa na Educação em 14 de março deste ano. Apresentada pelo conselheiro Vieira de Mello Filho, a iniciativa deve difundir os conceitos e a prática desse tipo de abordagem para o ambiente escolar, conforme preconizado pela Resolução CNJ n. 458/2022.
Leia mais: Conselheiro do CNJ prestigia encontro sobre Justiça Restaurativa no Norte e Nordeste
O conselheiro destacou que a decisão está amparada no consenso universal da relevância estratégica da educação para o desenvolvimento humano e social. “As perturbações do cotidiano escolar podem trazer prejuízos acadêmicos e dificuldades de toda sorte que debilitam nossas escolas ao absorverem pressões relacionadas a questões de vulnerabilidade e violência do seu entorno.”
Texto: Margareth Lourenço
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias