O olhar inocente, mas atento, e o comportamento diferente de algumas crianças quilombolas da zona rural de Teresina de Goiás (distrito judiciário de Cavalcante) que abrange as comunidades Kalunga, Diadema e Ema, retrata uma dura realidade vivenciada por meninas e meninos todos os dias no Brasil: a suspeita de um abuso sexual por pessoas próximas e a vergonha de falar sobre um crime cruel, que, embora divulgado todos os dias, ainda é tabu. Para ajudar a combater essa violência sexual contra crianças e adolescentes, usando a escola como ferramenta primordial, a equipe do Programa Escuta, da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás, percorreu de segunda a quarta-feira (26 a 28), 19 escolas municipais de três localidades do território goiano de difícil acesso: Teresina de Goiás, Monte Alegre (integrante da Comarca de Campos Belos) e Campos Belos. Dessas unidades escolares, 9 são da zona rural quilombola e 10 da urbana, alcançando mais de 2,3 mil crianças.
Nesses três dias, o evento contou com o envolvimento de 61 profissionais da Rede de Proteção dos municípios de Teresina, Monte Alegre e Campos Belos. Além dos atendimentos individualizados nas comarcas, por determinação do corregedor-geral da Justiça, esta ação do Programa Escuta, em especial, tem viés colaborativo e complementar ao Programa Justiça Itinerante, cuja segunda edição está sendo promovida pelo Tribunal de Justiça de Goiás, na Região Nordeste do Estado até sexta-feira (30/6), e que teve início em Teresina de Goiás na segunda-feira (26/6).
Levando a escuta ativa, orientações diversas, acolhimento e auxílio na prevenção e enfrentamento de crimes sexuais contra crianças e adolescentes e no fortalecimento da Rede de Proteção contra esse tipo de violência, o Programa Escuta promoveu nos três municípios o Workshop Crimes Sexuais contra Crianças e Adolescentes: formas adequadas de abordagem. Durante os trabalhos foram executadas ainda diversas atividades com os alunos das escolas da zona rural e urbana dos três municípios.
A equipe da Divisão Interprofissional Forense (DIF), que é coordenada pelo juiz Gustavo Assis Garcia, auxiliar da CGJGO, e tem à frente a assistente social, Maria Nilva Fernandes da Silva Moreira, recebeu apoio incondicional da juíza Carolina Gontijo Oliveira Alves, diretora do Foro de Campos Belos, e do juiz Leonardo de Souza Santos, que responde por Cavalcante e Teresina de Goiás (distrito judiciário), bem como da primeira-dama de Campos Belos, Thatyana Pricinote, que esteve presente ao workshop e parabenizou a equipe da DIF e a CGJGO pela iniciativa, representantes da Câmara Municipal de Campos Belos e Monte Alegre, e das Secretarias de Educação e de Assistência Social de ambos. Pela DIF também integraram a execução dos trabalhos a pedagoga Cyntia A. Araújo Bernardes e a psicóloga Ana Paula Osório Xavier.
Sem omissão
Ao observar o crescente número de casos de violência sexual contra crianças e adolescentes nos últimos anos, especialmente após o período pandêmico, no qual comunidades de acesso restrito como os quilombolas ficaram ainda mais isolados e as crianças e jovens suscetíveis a esse tipo de crime, cometido, na maioria das vezes pelos próprios familiares, o corregedor-geral da Justiça de Goiás, desembargador Leandro Crispim, reforçou a importância do trabalho amplo realizado pela equipe da DIF da CGJGO com o Programa Escuta nas comarcas mais distantes do Estado.
“Precisamos estar atentos, agir com celeridade e restabelecer a confiança da comunidade na Justiça. O Programa Escuta é uma ferramenta fundamental não só para a prevenção desses crimes, mas um canal de denúncia e de fortalecimento da rede de proteção nas escolas, um espaço de expressão propício para instruir as crianças e os profissionais que atuam nesta área. Não podemos, nem vamos nos omitir”, frisou.
Sensibilidade e humanização
Para o juiz Gustavo Assis, o sucesso de mais uma edição do Programa Escuta com o alcance de um número tão expressivo de crianças e adolescentes atendidos, que ultrapassa 2 mil, demonstra uma sensibilização maior a essa temática e uma preocupação extrema da CGJGO e da rede de proteção em prevenir os casos de violência infanto juvenil e orientar quanto às formas corretas de denúncia e abordagem.
“Atingimos nosso objetivo, orientando, esclarecendo, ouvindo, entregando materiais educativos, visitando 19 escolas, a maioria de difícil acesso, e explicitamos a importância da rede de proteção local. Fornecemos dados diversificados para combate a esse crime perverso, municiando, assim, regiões distantes e, por tantas vezes esquecidas. Estamos muito felizes com o resultado satisfatório desta ação realizada sob a responsabilidade da DIF com tanto afinco e dedicação”, ressaltou o magistrado.
Violências diversas e Lei Henry Borel
Além da abordagem sobre o contexto de violência sexual contra crianças e adolescentes, o workshop abordou temas como sinais e sintomas de violência sexual, condução de entrevistas e formas adequadas de abordagem (Lei nº 13.431/2017), a escola interrompendo o ciclo de violência sexual, notificação compulsória, medidas protetivas, responsabilidade social, violência institucional e Lei Henry Borel (Lei nº 14.344/2022).
Profissionais da educação, rede de proteção social, segurança e saúde (Escolas Municipais, CREAS, CRAS, Conselho Tutelar, Saúde e Segurança) participaram ativamente dos eventos nesses três dias em Teresina de Goiás, Monte Alegre e Campos Belos. Houve ainda exposição de vídeos educativos com linguagem adequada à idade, entrega de folders e cartilhas educativas que explicam a diferença entre o que é abuso e o que é carinho, já que crianças não tem esse discernimento, principalmente aquelas que moram em regiões distantes e de difícil acesso, como os quilombolas.
Acolhimento e gratidão
Enaltecendo a atuação da equipe do Programa Escuta em Campos Belos, a juíza Carolina Gontijo Oliveira Alves, diretora do Foro local, classificou-a como de “suma importância para a comunidade de Monte Alegre”.
A magistrada lembrou que, ao lidar com as demandas que dizem respeito à criança e ao adolescente, deve-se sempre ter em mente que são pessoas em desenvolvimento, e que dependem de ações preventivas para garantir a proteção de seus direitos.
“A ação promovida pela Corregedoria-Geral é essencial para que os próprios infantes saibam compreender situações de abuso e possam denunciá-las, e, de idealmente, evitá-las antes de ocorrerem. A experiência proporcionada pelo projeto Escuta foi acolhedora, reveladora e agregadora à comarca e à população, razão pela qual manifesto meu orgulho e gratidão pelo trabalho realizado”, elogiou.
O início
O Programa Escuta é uma iniciativa da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás e foi instaurado pela Portaria nº 198/2015, do órgão censor, que estabeleceu o grupo de trabalho interprofissional para prevenção de crimes sexuais contra crianças e adolescentes e fortalecimento da Rede de Proteção no Enfrentamento desse tipo de violência.
Os trabalhos tiveram início em meados de 2015, na Comarca de Cavalcante, após inúmeras denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes nas comunidades remanescentes de quilombolas.
A ação segue ainda os princípios da Recomendação nº 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais e da Lei nº 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
Dados alarmantes
No primeiro trimestre de 2022, Goiás registrou uma média de seis estupros de crianças e adolescentes por dia, o que representa uma ocorrência a cada quatro horas. Metade delas tinha até 11 anos de idade. Os dados são da Secretaria de Estado de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO).
De janeiro a abril deste ano (2023), o Disque 100 (Disque Direitos Humanos) registrou mais de 17 mil violações sexuais contra crianças e adolescentes. Nos quatro primeiros meses de 2023 foram registradas, ao todo, 69,3 mil denúncias e 397 mil violações de direitos humanos de crianças e adolescentes, das quais 9,5 mil denúncias e 17,5 mil violações envolvem violências sexuais físicas – abuso, estupro e exploração sexual – e psíquicas.
Fonte: TJGO