Direitos constitucionais garantidos, mas que não chegam a todas as brasileiras e todos os brasileiros. Essa é uma realidade nos locais distantes dos grandes centros e que foi alvo de uma ação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e mais de 50 instituições reunidas para oferecer serviços e acesso a cidadania e benefícios sociais. Centenas de profissionais fizeram um esforço concentrado durante os cinco dias do Justiça Itinerante Cooperativa da Amazônia Legal para atender às comunidades em suas mais diversas demandas.
Foram mais de 10 mil atendimentos entre 17 e 21 de junho nas cidades de Humaitá e Lábrea. As duas cidades de Amazonas, estão a cerca de 700 quilômetros de distância da capital, Manaus. Pessoas puderam ter acesso a documentos pessoais pela primeira vez, além de muitos outros que tiveram reconhecido o direito à aposentadoria, registro de terras e até o nome social, que é o caso de seis mulheres transgêneros que puderam ser registradas como se identificam.
Diferentes realidades
A experiência no Amazonas aproximou pessoas que, apesar de compartilhar a mesma nacionalidade, vivenciam realidades diferentes e mantêm relação distinta com o Estado. A realidade local causou um impacto enorme nas equipes que prestam os atendimentos. A juíza do trabalho e auxiliar da Presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Gabriela Lacerda disse que um dos principais desafios é o acesso ao trabalho decente na região. “A gente tem muito poucas políticas públicas de geração de renda que permitam que os direitos básicos, como registro em carteira e limite de jornada, direitos constitucionais previstos, se tornem inalcançáveis pela população local”, afirmou.
Os relatos de inúmeras violações, inclusive de situações de trabalho em condições análogas à escravidão e trabalho infantil, também foram indicados como algo constante. Nesse sentido, a magistrada entende que o papel da Justiça Itinerante vem numa linha de conscientização sobre esses direitos. “E de visibilidade de uma realidade que se faz presente, não só aqui, mas em toda a região da Amazônia, e que muitas vezes a gente não tem acesso em outras regiões e capitais do país.”
Nos dois primeiros dias da itinerância, foram realizadas dezenas de audiências trabalhistas, além de 265 pessoas capacitadas pelo Ministério Público do Trabalho. A falta de informações sobre direitos, além do medo da população em relatar situações envolvendo as violações sofridas são apontados como fatores limitantes à expansão do serviço que é oferecido pela Justiça Itinerante.
Identidade garantida
Em outra frente, a parceria do CNJ garantiu a presença da Secretaria de Segurança Pública (SSP/AM) do Amazonas para emitir certidões de nascimento e identidade de pessoas que nunca foram registradas. Cerca de 800 atendimentos foram realizados apenas em Humaitá, coordenados pela auxiliar de identificação Catarina Lobato.
“Acontece de a gente não almoçar para não interromper o atendimento, pois sabemos qual é a dificuldade, qual é a realidade do interior. Sabemos também que a ajuda é importante, necessária, e da dificuldade das pessoas para conseguir chegar até aqui”, relatou. O direito ao documento é básico, uma vez que ele dá acesso a todos os outros benefícios sociais, além de serviços bancários, atendimentos jurídicos, entre outros.
Carências diversas
A subprocuradora chefe do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Cynthia Passos, destacou que, para quem não vive a realidade da Amazônia, participar de uma iniciativa como essa é a chance do contato com os destinatários das políticas públicas que ela, enquanto servidora pública, executa. “Isso permite a percepção do verdadeiro sentido do nosso trabalho, que é dar respostas aos problemas que as pessoas apresentam”, explica. “Aqui, lidamos com pessoas que enfrentam carências diversas e, às vezes, desacreditam do papel do Estado porque se sentem esquecidas”, disse, enquanto, em Humaitá, acompanhava o trabalho das 20 pessoas que integram a equipe do Incra na Justiça Itinerante Cooperativa.
“Para mim, a oportunidade de estar aqui é como um doutorado em humanidade, estou sentindo o direito, coisa que nenhuma escola me ensinou”, conta o juiz federal Hugo Abas Frazão. Ele está lotado na Seção Judiciária do Maranhão e, pela primeira vez, participou de uma ação da Justiça Itinerante Cooperativa na Amazônia Legal. Junto com outros quatro colegas, o magistrado com nove anos de experiência na carreira dividia sala de aula em Humaitá com assistentes, defensores públicos e procuradores federais.
“É um privilégio aprender com outras culturas e isso facilita a comunicação entre o servidor e o povo”, avalia o procurador federal da Advocacia-Geral da União (AGU), Guilherme Viana Lara Alves, que mora em Porto Velho, a 200 quilômetros de Humaitá. O integrante da equipe que representava judicialmente o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) participou de audiências na mesma sala em que trabalhava o juiz Frazão. “O resultado do nosso trabalho nesses primeiros dias significa que mais de 200 famílias serão beneficiadas com uma renda de que lhes é devida, a garantia da ampliação de direitos básicos, estamos falando de dignidade”.
Povos Indígenas
Na sala reservada à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em Lábrea e Humaitá, a equipe estava de prontidão para o atendimento de pessoas que integram os povos indígenas da região. Entre os funcionários da Coordenação Local da Funai do Médio Purus, quatro são nascidos na região. Eles falam línguas nativas e atuam como tradutores, para acompanhar o atendimento desde a chegada na escola. “É, para nós, a oportunidade rara de contar com todos esses atendimentos todos num mesmo lugar, ao mesmo tempo”, explica o chefe da representação institucional, Samuel Lima Barreto.
O homem de 32 anos é integrante do povo Apurinã e ocupa o cargo há três anos. “Vale muito, para nós, só atravessar um corredor e conseguir a emissão de um documento e, então, poder dar início ao processo que vai permitir o acesso a, por exemplo, um benefício previdenciário”, explica Barreto.
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População desassistida
Na manhã desta terça-feira (25/6), o presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, exaltou a ação: “Foram mais de 10 mil atendimentos procurando levar a Justiça a um dos rincões do Brasil, onde as pessoas, frequentemente, são desassistidas do poder público de uma maneira geral”, disse o ministro, ao destacar a oportunidade de poder conviver com aquele Brasil muito profundo e muito necessitado.
Texto: Luís Claúdio Cicci
Edição: Sarah Barros
Agência CNJ de Notícias