Joaquim Falcão*
Devemos ser pragmáticos. Há meios de conciliá-los. Judiciário ágil e legítimo e imprensa livre e responsável são faces da mesma moeda
AS OPINIÕES se dividiram: a reportagem de “O Globo” sobre os laptops dos ministros do Supremo Tribunal Federal foi legal? Foi constitucional?
Alguns juízes e advogados acreditam ter havido invasão de privacidade e até crime de violação de correspondência. Já outros juízes, advogados e jornalistas acreditam que foi legítimo exercício da liberdade de imprensa. O leitor precisaria ser informado da realidade das instituições. Inclusive do lado humano dos ministros. Às vezes, demasiadamente humano. Liberdade x privacidade, o conflito mais previsível deste século 21. A sociedade se divide. Há saída para essa divergência fundamental? Tem que haver.
Se o foco da pergunta mudar da constitucionalidade ou não da reportagem para o aperfeiçoamento institucional do STF, a divergência tende a desaparecer. Se a questão for: “O atual processo decisório do Supremo protege sua necessária privacidade, sem a qual inexiste independência do julgar, garantia fundamental dos cidadãos?”, novos caminhos se abrem.
Hoje, o plenário do STF decide assim: o processo judicial entra e é distribuído aleatoriamente a um ministro chamado “relator”, que o estuda e trabalha sozinho com sua equipe elaborando o voto. Nenhum mecanismo, costumeiro ou formal, de troca de informações e idéias entre os ministros é previsto. Nelson Jobim estimulou essa prática, mas não a formalizou. Quando pronto o voto, pede-se à presidência que o processo vá à sessão.
Somente então os demais ministros tomam conhecimento. O voto do relator muita vez chega à sessão como mistério a ser desvendado na hora e publicamente. Salvo por informações fragmentadas entre os gabinetes e, eventualmente, pela coerência com a jurisprudência, o voto de um é novidade para o outro. Com a TV gravando a eventual surpresa. O resultado é claro: a natural incerteza judicial acaba aumentando a indesejável insegurança jurídica. Se aquela é estruturadora da democracia, esta é sua patologia.
Parece óbvio que há a necessidade de um momento coletivo no processo decisório do Supremo, com toda privacidade possível, em que o livre debate entre seus membros possa ocorrer. Uma saudável troca de idéias e doutrinas. Discordâncias e busca de consensos. Tentativas de conciliação.
Discussões político-jurídicas. Cara a cara. Um momento de solidões francas e convergentes. Sem a presença de ninguém. Sem público, jornalistas ou assessores. No caso, o direito à privacidade não é direito à solidão. É direito à institucionalização de um processo decisório coletivo, sem nenhuma interferência, a não ser a participação igualitária dos julgadores.
A Suprema Corte americana assim já procede. Decidido que o processo será julgado, os advogados enviam por escrito suas razões. Todos os ministros recebem informações ao mesmo tempo. No Brasil, o relator é privilegiado. Sabe tudo antes. Lá, a primeira sessão pública é uma argüição, pelos ministros, dos advogados que fazem sustentação oral. Pode até haver alguma discussão entre eles. Mas o objetivo principal é a uniformização pública de informações, para posterior reflexão privada. Depois, se recolhem, trocam memorandos internos, fixam posições, tentam convencer os colegas. Reúnem-se privadamente.
Ninguém tem acesso a essas conferências privadas. Só os ministros. Aí decidem posições e votam. Voltam a público para comunicar a decisão: um relator para o voto do grupo vencedor e relatores para os votos divergentes.
Nas sessões públicas, os ministros se colocam mais alto, num estrado, em que a imprensa, mesmo com as tecnologias de hoje, dificilmente os alcança. A não ser de maneira predeterminada: de frente e de baixo.
A sala do Supremo brasileiro foi feita décadas atrás, quando as atuais e legítimas tecnologias de captura de informações inexistiam. Ficou vulnerável. Tem forma de arena de debatedores, e não de “locus” para o alinhamento de julgadores supremos.
Antes, pois, de consumir o país em discussão fratricida, opondo a indispensável privacidade dos membros do STF à também indispensável liberdade de imprensa, talvez seja o momento de aperfeiçoar o próprio processo decisório do tribunal. Trocar um monólogo de solidões potencialmente conflitantes pelo diálogo incansável de busca de consensos.
Quanto mais não seja, por simples motivo. Se perguntarmos aos juízes, advogados e jornalistas que hoje debatem entre si se preferem a independência e a privacidade do Supremo ou a liberdade de imprensa, a resposta é clara: os dois. Devemos ser, pois, pragmáticos. Há meios gerenciais de ambos conciliar. O momento é este. Judiciário ágil e legítimo e imprensa livre e responsável são faces da mesma moeda. A moeda da democracia.
(*) Joaquim Falcão é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e membro do Conselho Nacional de Justiça
Artigo publicado em 28 de agosto de 2007