A nova realidade tecnológica, especialmente após a pandemia de covid-19, acelerou as preocupações com práticas como o sharenting, quando os próprios pais compartilham imagens dos filhos nas redes sociais. A palavra é a junção dos termos em inglês share (compartilhar) e parenting (paternidade).
“O sharenting é um fenômeno social cujos riscos psicológicos ainda não estão dimensionados. Há uma certa normalização perigosa”, alertou o conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Giovanni Olsson, que presidiu o painel “Trabalho de Crianças e Adolescentes em Plataformas Digitais na visão do Sistema de Justiça”, durante o webinar Trabalho Infantil Artístico e o Mundo Digital.
Segundo pesquisa realizada em 2022 pela TIC Kids Online Brasil, do Comitê Gestor da Internet no Brasil, 93% das crianças e dos adolescentes de 9 a 17 anos de idade estão conectados no país, o que significa que a internet tem 22,3 milhões de usuários mirins em solo brasileiro.
Contas monetizadas
A juíza do Trabalho do Recife Andrea Keust Bandeira de Melo alertou que a exposição excessiva da criança nas redes, mesmo sendo realizada pelos próprios pais a exemplo do sharenting, pode levar a problemas psicológicos, tais quais ansiedade, baixa autoestima e depressão.
Para além disso, há a questão da velocidade das redes. “Você posta uma foto, faz comentário e ali já está na rede. No mundo da globalização, para retirar da rede é muito difícil. Por mais que você apague, o post fica dentro da plataforma, armazenado”, advertiu, lembrando ainda que com mil seguidores já se pode ter uma conta monetizada, o que acabou tornando os influencers mirins fontes de renda para as famílias.
Ela lembrou que, pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no Brasil é exigido o consentimento dos pais para compartilhamento de imagens de crianças de até 12 anos de idade. Nos Estados Unidos, a restrição para coleta de dados na internet é para menores de 13 anos de idade, enquanto na Espanha a idade mínima para abrir contas monetizadas é de 14 anos de idade.
A juíza do Trabalho Noemia Aparecida Garcia Porto, também considera uma situação sem precedentes o atual momento de acesso amplo à internet. “Canais de interação possuem o potencial de transformar cada criança e adolescente em provedor de conteúdo digital. Há desafios, pois eles constituem outra forma de pertencimento, outras vaidades”, afirma, acrescentando que há limites entre a exposição espontânea e o consumismo infanto-juvenil incentivado pela propaganda.
Ela recorda que, desde 1998, a erradicação do trabalho infantil é um compromisso assumido no âmbito da Organização Internacional do Trabalho (OIT) edefende que haja atuação conjunta da Justiça do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho (MPT) e da Auditoria Fiscal do Trabalho (AFT) na fiscalização do trabalho infantil cultural e desportivo, por meio de cooperação judiciária.
“A justiça especializada e o MPT detêm a competência e atribuição funcional. Ainda que não seja emprego, é trabalho”, afirmou, lembrando que por este motivo há razão para se fiscalizar aspectos como a jornada de trabalho e o patamar remuneratório digno. Nos falta um marco regulatório adequado”, advertiu.
Experiências internacionais
A juíza explicou que em Portugal, por exemplo, a questão se encontra disciplinada no código de trabalho e não há dúvida de que manifestações artísticas não voluntárias em qualquer mecanismo constituem uma forma de trabalho.
“Nos Estados Unidos, da mesma maneira: na Califórnia, um dos maiores centros produtores de entretenimento no mundo que é Hollywood, há o California Label Code, que estabelece limites ao trabalho, e o California Family Code, para implicar a responsabilidade familiar. Mas o trabalho de crianças e adolescentes não se circunscreve a direito de família”, explicou.
Outro exemplo de regulamentação vem da Argentina, que ratificou a convenção da OIT e adotou, na província de Buenos Aires, resolução específica para a situação excepcional do trabalho artístico infantil em 2008. “Trabalho infantil artístico é trabalho e merece atenção e atuação estatal especializada para efetivamente proteger os adolescentes e as crianças em situação de trabalho”, disse.
Atuação conjunta
Eduardo Rezende Melo, juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e coordenador pedagógico da área temática da infância e da juventude na Escola Paulista da Magistratura, ressaltou ser imprescindível a escuta da criança. “Nas audiências, podemos prestar informações sobre os direitos das crianças e também colher a anuência delas”. Dessa forma, segundo ele, é possível lembrar aos pais das suas responsabilidades diante do trabalho infantil artístico dos filhos.
A procuradora do Trabalho do MPT em São Paulo, Ana Elisa Alves Brito Segatti, apontou para a necessidade de que, na análise da questão do trabalho artístico infantil, seja levado em conta não somente o trabalho realizado em frente às câmeras, mas também os realizados off-line, ou em áreas VIPs, por exemplo, com a presença de fotógrafos.
“No Estado de São Paulo, em que atuo, já estão sendo expedidos ofícios ao MPT e há casos em que o pedido de autorização não corresponde ao que foi realizado”, relatou a procuradora, acrescentando que fatos como estes revelam a importância da atuação conjunta da rede de proteção, com o Ministério Público Estadual (MPE) e o MPT somando esforços.
O promotor de Justiça e especialista em crimes contra a criança pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, Lélio Ferras de Siqueira Netto, apontou como caminho para uma fiscalização mais eficaz a construção de roteiros comuns e fundamentados quanto aos parâmetros e às exigências que levem em conta informações comprovadas documentalmente para concessão de alvarás.
Além de documentação técnica, também considera importante a comprovação de frequência e aproveitamento escolar, bem como respeito aos horários e às rotinas, a fim de que as crianças e os adolescentes possam compatibilizar escola, descanso, interação familiar e social com o trabalho artístico.
Texto: Mariana Mainenti
Edição: Karina Berardo
Agência CNJ de Notícias