Tribunais de vários estados passam, a partir deste ano, a centrar esforços na preparação para tornar efetivo o protocolo para depoimento especial de crianças e jovens de povos e comunidades tradicionais. Instrumento para a proteção de menores vítimas ou testemunhas de violência, o protocolo definido no no “Manual de Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais” foi elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no ano passado a partir de um projeto-piloto desenvolvido nos tribunais de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS), Amazonas (TJAM), Bahia (TJBA) e de Roraima (TJRR) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud).
Agora, as instituições que compõem a ampla rede de proteção passam a implementar o roteiro, que traça como os depoimentos especiais e as provas devem ser colhidos e reunidos. “O grande desafio dos tribunais é mobilizar colaboradores e fontes de financiamento e organizar parcerias para articularmos com os demais atores da rede de proteção, do Sistema de Justiça e de Segurança para que esse trabalho tão bem elaborado possa ser trazido à nossa prática de maneira que se alcance não somente o objetivo de coleta de provas, mas de proteção a essas crianças e adolescentes”, afirmou a juíza Katy Braun do Prado, do TJMS.
A partir dessa construção, os órgãos do Poder Judiciário passam a uma articulação maior para implementar o roteiro que traça como os depoimentos especiais e as provas devem ser colhidos e reunidos. Para as cortes, a meta é assegurar a adoção do depoimento especial com resguardo das especificidades socioculturais dos povos e comunidades tradicionais. Essa preparação foi debatida durante o evento “Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência – Comunidades Tradicionais”,, realizado nesta sexta-feira (11/2) pelo CNJ em evento transmitido pelo YouTube.
“O grande desafio dos tribunais é mobilizar colaboradores e fontes de financiamento e organizar parcerias para articularmos com os demais atores da rede de proteção, do Sistema de Justiça e de Segurança para que esse trabalho tão bem elaborado possa ser trazido à nossa prática de maneira que se alcance não somente o objetivo de coleta de provas, mas de proteção a essas crianças e adolescentes”, disse a juíza Katy Braun do Prado, do TJMS.
Entre as diretrizes a serem observadas pelos órgãos da Justiça estão a organização interna para a tomada do depoimento especial, articulação com as instituições de garantia de direitos, formação permanente de magistrados, servidores e colaboradores, diálogo e articulação com os povos tradicionais, além de planejamento, monitoramento e avaliação das ações adotadas.
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Diversidade
Na prática, esta é a realidade de cerca de 28 povos indígenas e 305 etnias que se comunicam por meio de 284 idiomas que vivem no território brasileiro com sua cultura, tradições e costumes, muitas vezes em comunidades distantes e carentes de políticas públicas. As informações foram coletadas pelo IBGE em 2011 e 2012 e informada no evento pela Procuradora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Sul Denise Casanova Villela.
No dia a dia, os casos de violação de direitos em menores de povos e comunidades tradicionais são variados, desde crianças que são testemunhas de violência doméstica e familiar a vítimas de maus-tratos, de abandono parental, de violência sexual, psicológica e de violência institucional, muitas vezes responsáveis pela revitimização.
Diante dessa realidade a ser enfrentada, juízes e juízas mostraram-se aliviados com a decisão do CNJ de definir um manual a ser seguido no depoimento especial de crianças e jovens de povos e comunidades tradicionais.
“Até então, magistrados de comarcas longínquas se sentiam meio perdidos sem saber o que podiam ou não fazer. Com a divulgação desse manual, todos passam a saber os mecanismos e, obedecendo às peculiaridades de cada povo em suas aldeias e tribos, poderão trabalhar e buscar parcerias para as soluções apresentadas´, avaliou a desembargadora do TJAM Joana Meirelles.
A organização dos depoimentos especiais vai demandar uma articulação entre as diferentes instituições que compõem a rede de proteção, com definição de fluxos para o atendimento célere e eficaz para que seja conferida a esses crianças e jovens vítimas ou testemunhas de violência a prioridade absoluta.
“A violência dentro das comunidades dos povos tradicionais é complexa e possui fatores específicos. As mulheres, crianças e jovens são os mais vulneráveis e essa a violência é proveniente de situações de extrema precariedade e de falta de políticas públicas diferenciadas”, comentou o juiz do TJBA Arnaldo José Lemos de Souza. Para ele, a articulação com as lideranças dessas comunidades é fator chave para que esses depoimentos especiais sejam bem-sucedidos.
Pertencente a uma comunidade tradicional extrativista, a especialista em educação do campo Edel Moraes citou casos específicos de violência contra crianças e adolescentes ocorridos nas comunidades da Ilha de Marajó, no Pará, uma das áreas brasileiras com o mais baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país.
Vivendo com menos de R$ 150 por mês na pobreza ou extrema pobreza, muitos dos moradores da região convivem com a violência em sua rotina. O mais comum, apontou Edel Moraes, são casos de difícil elucidação até pelo fato de muitas das crianças e jovens não terem certidão de nascimento. São, conforme apontou ela, pessoas em situação a trabalho análogo ao da escravidão, ou filhos de extrativistas, pescadores, famílias ribeirinhas, ciganas ou quilombolas sem acesso à escola ou saúde pública, em situação extrema de vulnerabilidade social.
A preparação dos tribunais e dos magistrados e magistradas é parte da solução desses problemas, conforme apontou o juiz Jorsenildo Dourado do Nascimento do TJAM. Falando sobre a realidade do Amazonas, ele disse que somente na localidade de São Gabriel, há 22 etnias diferentes.
“O manual que está sendo lançado muito é importante para o dia a dia dos magistrados e com essa política o CNJ dá uma importante contribuição para o aperfeiçoamento da jurisdição voltada para os povos e comunidades tradicionais”, disse. Os desafios para a efetiva implementação foram abordados também pela por Denise Casanova Villela. Ela considera que para tornar efetivo o protocolo do depoimento especial, a Justiça terá que se organizar para entender mais e melhor os povos tradicionais, sua linguagem, cultura, costumes e necessidades.
“O Poder Judiciário terá que criar sistemas de informação judicial de auto-declaração por meio de pactuações com a polícia e o Ministério Público e outras instituições na oferta de peças processuais que contenham informações (sobre esses povos e comunidades) a fim de organizar o depoimento especial”, disse.
De forma complementar, o juiz e coordenador de Infância de Juventude do Tribunal de Justiça de Roraima, Marcelo Lima Oliveira, abordou questões práticas. Ele citou, por exemplo, a importância da ajuda de um intérprete ou mediador para as oitivas e coleta de prova, o cuidado na definição do local dos depoimentos especiais e o diálogo com as lideranças e membros das comunidades em que a violência ocorreu. “Nós, magistrados, precisaremos trabalhar com a rede de proteção e com as instituições para que haja confiança mútua na implementação do protocolo.”
Luciana Otoni
Agência CNJ de Notícias
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