Para especialistas da ONU, audiências de custódia corrigem arbitrariedades contra presos no Brasil

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Audiência de custódia realizada no Tribunal de Justiça do Paraná -Foto: Ascom TJPR
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A implantação das audiências de custódia no Brasil foi um momento significativo para corrigir práticas arbitrárias no tratamento contra pessoas privadas de liberdade. Segundo dados apresentados nesta sexta-feira (8/12) pelos integrantes do Mecanismo Internacional Independente de Especialistas para Promover a Justiça Racial e a Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei (EMLER), é responsabilidade do Poder Judiciário quebrar o ciclo de impunidade e a violação dos direitos humanos nas prisões.

O objetivo da visita dos especialistas da Organização das Nações Unidas (ONU), que estiveram no Brasil entre os dias 27 de novembro e 8 de dezembro, era analisar a legislação, políticas e práticas que regulam o uso da força por agentes das forças de segurança, alinhado às normas internacionais dos direitos humanos.

Também buscavam verificar as medidas concretas para garantir o acesso à justiça, a responsabilização e a reparação por uso excessivo da força e de outras violações contra africanos residentes e afrodescendentes no Brasil. O resultado preliminar do levantamento foi apresentado durante coletiva de imprensa.

O professor Juan Méndez, membro da EMLER, destacou a importância da audiência de custódia, implantada pelo Judiciário brasileiro em 2015, que atende aos pactos e tratados internacionais de direitos humanos assinados elo Brasil.

Méndez ressaltou, porém, que a prática passou a ser realizada de forma virtual, a partir da pandemia, mas que, agora, deveria voltar ao modelo presencial. “Isso complica um pouco, já que presencialmente o juiz usa todas suas habilidades para ver o que está acontecendo. A audiência contribui com as investigações sobre a violação dos direitos humanos, além de evitar práticas de tortura”.

Lançadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), as audiências de custódia consistem na apresentação, preferencialmente em 24 horas, da pessoa que foi presa a um juiz, em uma audiência onde também são ouvidos Ministério Público, Defensoria Pública ou advogado do preso. O magistrado analisa a prisão sob o aspecto da legalidade e a regularidade do flagrante, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão, de se aplicar alguma medida cautelar e qual seria cabível, ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. A análise avalia, ainda, eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.

Segundo a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Wanessa Mendes de Araújo, que esteve reunida com os membros da EMLER em novembro, o Judiciário tem trabalhado para capacitar seus agentes, além de promover cooperação com outras entidades públicas e privadas e a sociedade civil para que a equidade racial se consolide como realidade. “É evidente que para que haja o fortalecimento de uma cultura pela equidade e antirracista o primeiro passo é a conscientização sobre o tema e a atuação permanente e vigilante contra qualquer forma desviante”, afirmou.

Durante a coletiva, também foi destacada a necessidade de se aumentar o número de pessoas negras no poder público e no Judiciário em especial. De acordo com dados do Relatório Étnico-Racial no Poder Judiciário, apenas 12,8% das magistradas e dos magistrados se autodeclararam como negros-pardos, enquanto 1,7% se autodeclararam negros-pretos. Em relação às servidoras e servidores, 24,5% se identificaram como negros-pardos e 4,6%, como negros-pretos.

A juíza auxiliar lembrou ainda que 100% dos tribunais do país aderiram ao Pacto do Poder Judiciário pela Equidade Racial, que prevê tanto a articulação interinstitucional e social entre os tribunais signatários como o desenvolvimento de ações para a proteção e promoção da equidade racial. “Desarticular o racismo não é, sem dúvidas, uma tarefa fácil, pois é uma chaga social, mas essas ações demonstram o compromisso do Poder Judiciário e seus agentes para que se avance para a construção de uma instituição mais diversa racialmente e sensível às questões dessa natureza que chegam e que possam receber o acolhimento necessário para a prevenção e combate ao racismo e todas as demais formas de discriminação”.

Para a especialista Tracie Keesee, falta ao Brasil uma representatividade de mulheres negras na Suprema Corte. Conforme sua análise, é importante a presença delas em lugares de decisão. “Quando isso acontece, reforça políticas e leis que podem ser protocolos para combater o racismo. No entanto, isso não pode ser responsabilidade de apenas uma pessoa, mas para todos, tanto em nível individual, quanto coletivo.”

Força policial

Méndez destacou algumas boas práticas que podem ser reforçadas e replicadas. Ele afirmou que é preciso reconhecer o racismo sistêmico no país, para que as políticas públicas sejam melhor desenhadas. O especialista citou as cotas raciais e o uso de câmeras pelos policiais como medidas positivas para esse enfrentamento.

Já Tracie Keesee ressaltou a importância do uso da tecnologia para denunciar os incidentes. “É importante o reconhecimento da interseccionalidade incluindo raça, idade, gênero, religião, entre outros”. Ela destacou também o trabalho realizado pelas secretarias de segurança de acompanhamento das famílias das vítimas como uma medida importante a ser replicada. “ O Brasil tem muitos desafios relacionados aos direitos humanos. Verificamos a presença de racismo estrutural presente em algumas leis – especialmente relacionadas à saúde e emprego – que perpetuam isso”, pontuou.

Os especialistas se disseram preocupados com uso excessivo da força, assassinatos e desaparecimentos, especialmente contra negros em áreas rurais. Para eles, é fora do comum o número de pessoas negras encarceradas, com um percentual desproporcional às demais etnias. “A polícia não é condenada quando há um massacre e isso é preocupante. As comunidades têm medo de apresentar suas denúncias e sofrerem retaliação”, frisou Tracie. Ela afirmou ainda que há uma estigmatização das famílias que enfrentam represálias quando precisam do apoio do Estado, especialmente mulheres negras.

Além disso, foram observadas a falta de acesso à saúde, violência contra os presos, repressão dos funcionários das penitenciárias que equivalem à tortura e levam a muitas mortes nas prisões. Mas também identificaram um excesso de trabalho dos agentes e em situação insegura, o que reflete na saúde mental dos profissionais. “Muito mais precisa ser feito para aderir a um pelo policiamento e segurança pública com base em direitos humanos, inclusive ao uso da força aos responsáveis por aplicação da lei”, afirmou Méndez.

Os especialistas estiveram em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Salvador, recebendo informações, depoimentos e conhecendo as experiências vividas pelas pessoas afrodescendentes que vivem no Brasil. Eles se reuniram com autoridades governamentais nos níveis federal e estadual, representantes das forças policiais e demais agentes da lei, sociedade civil, indivíduos e comunidades afetadas e visitaram presídios.

O Mecanismo de Especialistas apresentará um relatório formal da visita ao país com as respectivas recomendações na 57ª sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas em Genebra, em setembro de 2024.

EMLER

O Mecanismo Internacional de Especialistas Independentes para Promover a Justiça Racial e a Igualdade no Contexto da Aplicação da Lei foi criado em julho de 2021 pelo Conselho dos Direitos Humanos para fazer recomendações, entre outras, sobre as medidas concretas necessárias para garantir o acesso à justiça, a responsabilização e a reparação por uso excessivo da força e outras violações dos direitos humanos por agentes da autoridade contra africanos e afrodescendentes.

Fruto de uma grande articulação pelo reconhecimento da responsabilidade estatal pelo assassinato de George Floyd e de inúmeros casos similares ao redor do mundo, o mecanismo foi criado em julho de 2021 pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU para fazer recomendações de medidas necessárias para garantir o acesso de africanos e afrodescendentes à Justiça, à responsabilização e à reparação do uso excessivo da força.

Texto: Lenir Camimura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

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