Como a Justiça brasileira trata os negros que a procuram? Essa e outras questões foram debatidas durante o painel “Julgamento com Perspectiva Racial” do seminário “Questões Raciais e o Poder Judiciário”, que está sendo promovido remotamente pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e teve sua programação iniciada na terça-feira (7/7).
Na opinião de Adilson José Moreira, mestre e doutor em direito constitucional pela Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, negros e indígenas, quando buscam o Poder Judiciário, esbarram em uma Justiça formada por homens brancos, heterossexuais, com boa condição social. A experiência deles não é a mesma da maioria da população brasileira: negra, pobre, periférica.
O especialista citou que, para escrever seu mais recente livro – Pensando como um Negro – fez uma longa pesquisa sobre decisões judiciais relativas a casos de racismo e injúria racial e percebeu que todas seguiam um padrão: juízes que decidem os casos abordam o racismo como um comportamento individual e não estrutural.
Adilson José Moreira afirmou que a interpretação dos fatos por parte dos magistrados está ancorada na ideia de neutralidade. Os juízes partem do pressuposto de que são neutros e podem julgar essas questões extremamente complexas. “Não levam em consideração os problemas relacionados ao racismo intergeracional, estrutural, institucional e ficam apenas com a análise formalística. As consequências concretas: acreditam que não devam condenar uma pessoa, uma vez que estamos em uma sociedade onde impera a cordialidade entre as pessoas, e que não teria havido vontade de praticar injúria, mas apenas a ação jocosa”, disse.
Apesar de os negros serem o segmento da população mais pobre, mais agredido pelo Estado e mais encarcerado, não há nenhuma pessoa presa por racismo no país. “O racismo brasileiro é um crime perfeito”, afirmou a juíza do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Karen Luise Pinheiro, que também participou do painel, citando frase do antropólogo Kabengele Munanga, sobre o mito da democracia racial brasileira.
Humanismo racial
Na avaliação do painelista, a expressão “humanismo racial brasileiro” explicaria a errônea ideia de que o processo de miscigenação seria responsável por uma cultura pública de igualdade racial. Como se, a partir dessa identidade nacional comum, o cidadão não operasse com diferenciações sociais. “Os brasileiros pensam serem melhores que americanos, pois teriam conseguido uma ausência de conflito racial. Quando uma parcela da população aborda a necessidade de ações afirmativas, eles reagem mal já que, para eles, o racismo não existe”, disse. E continuou: “Devemos abandonar a ideia da cordialidade, de neutralidade, de que somos moralmente superiores porque não fizemos o apartheid. Temos de reconhecer o racismo estrutural e fazer com que o juiz pense como um negro, tenha uma consciência múltipla. Quando analiso uma questão como essa, preciso levar as circunstâncias históricas e realidade social.”
Para Moreira, o operador de direito, por ser um agente político e ideológico, precisa levar em consideração o fato de que todos refletimos nossas realidades e nossos espaços de poder. “Os juízes precisam analisar os danos dessas atitudes, que são significativos. Piadas ou falas racistas reforçam a ideia de que atores negros não são competentes.”
O especialista terminou sua apresentação revelando uma de suas próprias experiências com o racismo. “Os mecanismos de exclusão foram mudando conforme o tempo, e as situações, mas mantém a eficácia. Tenho doutorado por uma das melhores universidades do mundo (Harvard), mas fui preterido (em uma seleção) por uma pessoa branca e apenas com mestrado. Essa é a experiência de todas as pessoas negras. O negro precisa provar 10 vezes mais competência que uma pessoa branca”, finalizou.
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Presidente da Comissão Permanente de Democratização e Aperfeiçoamento dos Serviços Judiciários, a conselheira Flávia Pessoa destacou ser fundamental que os membros do Sistema de Justiça estejam atentos ao racismo estrutural e institucional. De acordo com a conselheira, a questão continuará a ser objeto de políticas públicas desenvolvidas e propostas pelo CNJ. “Em 2015, o Conselho garantiu a reserva de vagas para negros nos concursos para a magistratura, mas a questão não está superada”, disse.
Também participaram do painel a juíza federal Adriana dos Santos Cruz (TRF2), a juíza Bárbara Ferrito (TRT1) e Alcioni Escobar, juíza federal (TRF1), para quem a a caminhada ainda está longe de terminar. “Esse é um tema de uma importância extrema; é chegada a hora de aprimorarmos nossa instituição e nosso agir profissional”, disse.
O seminário “Questões Raciais e o Poder Judiciário” segue com sua programação nesta quarta-feira (8/7)e está sendo realizado de maneira virtual. Durante a abertura do evento, o presidente do CNJ, ministro Dias Toffoli, fez o lançamento do grupo de trabalho criado para desenvolver ações que combatam o racismo no Sistema de Justiça. O seminário conta com apoio da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), da Associação dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), da Associação dos Juízes Federais (Ajufe) e dos coordenadores do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (Enajun).
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias