A experiência brasileira com as audiências de custódia nos últimos seis anos, incluindo as adaptações necessárias ao contexto da pandemia da Covid-19, foram apresentadas nesta semana pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) durante o diálogo internacional “Primeiras horas de detenção: 3 anos de lições práticas de prevenção à tortura – Perspectivas do Brasil, Madagascar e Tailândia”. O evento promovido pela Associação para a Prevenção da Tortura (APT) discutiu formas de otimizar o funcionamento do sistema de justiça criminal com acesso imediato da pessoa detida a um juiz.
No início da pandemia do novo coronavírus no Brasil, em março de 2020, o CNJ recomendou aos tribunais a revisão de procedimentos presenciais no campo de justiça criminal, incluindo a realização das audiências de custódia (Recomendação CNJ 62/2020). Magistrados e magistradas de todo o país passaram a fazer a análise qualificada de autos de prisão em flagrante e, no final de 2020, foi autorizada a audiência por videoconferência em caráter excepcional enquanto durar a pandemia (Resolução CNJ 357/2020). Simultaneamente, o CNJ tem prestado apoio técnico a tribunais que retomam as audiências presenciais gradualmente, seguindo boas práticas internacionais – Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, Roraima e Sergipe.
De acordo com o supervisor do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, conselheiro Mário Guerreiro, as adaptações provisórias em dinâmicas observam garantias para que o direito no preso seja preservado e também a saúde de todos os envolvidos. “O momento da pandemia realmente exigiu algumas alterações na dinâmica da audiência de custódia. Em um primeiro momento, optamos por recomendar aos juízes que não as realizassem.”
Ele explicou que a opção pela videoconferência foi considerada posteriormente como opção emergencial nos locais em que a apresentação presencial fosse inviável, com requisitos adicionais como a realização em uma sala onde esteja só o preso e seu advogado, o uso de uma câmera de 360 graus e assegurar que o preso seja acompanhado por um advogado com ele e um na sala do juiz, se o magistrado estiver no fórum. “Não é o ideal, mas, no contexto atual, isso é melhor do que simplesmente não fazer audiência quando isso não é possível.”
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Recomendações de práticas
A uma plateia virtual integrada por magistrados internacionais, o conselheiro apresentou a regulamentação da audiência de custódia pelo CNJ, por meio da Resolução 213/2015, que trouxe disposições de como os juízes devem agir nessas situações. “A audiência de custódia se baseia em duas premissas fundamentais. Em primeiro lugar, os tribunais têm que proporcionar condições adequadas para uma oitiva segura, atenta e cuidadosa do relato da pessoa custodiada que torne possível o depoimento, livre de qualquer ameaça ou intimidação em potencial.”
Sobre o segundo ponto, Guerreiro explicou que os juízes devem ter uma postura firme e vigilante de não tolerar qualquer forma de violência institucional, determinando sempre as respectivas diligências para apuração de todos os casos que forem narrados ou se existirem indícios de agressões físicas ou psicológicas. “Isso inclusive é uma medida fundamental para desnaturalizar a cultura da tortura no meio policial.”
Guerreiro também falou sobre como as audiências de custódia contribuem para coibir a prisão ilegal, reduzir a aplicação da prisão preventiva e prevenir e combater a tortura policial no país. “Estamos trabalhando já há algum tempo na melhoria das condições do sistema carcerário, tanto na entrada do preso, durante sua permanência no sistema prisional, quanto na porta de saída da cadeia. Hoje estamos falando da nossa porta de entrada, que envolve a audiência de custódia e o combate a tortura, especificamente.”
Ele citou ainda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2015, que declarou haver violação reiterada e maciça de direitos fundamentais dos cidadãos no sistema prisional brasileiro. “Isso levou a uma série de iniciativas tanto do Poder Executivo quanto do Poder Judiciário no sentido de melhorar as condições das prisões brasileiras. A audiência de custódia foi uma iniciativa muito importante que surgiu no bojo desse movimento de humanização do cumprimento da pena.”
Entre os resultados alcançados pelo Brasil desde a implantação das audiências de custódia, o conselheiro do CNJ citou redução na taxa de conversões em flagrante em prisões preventivas. “Isso foi muito interessante, porque o sistema prisional brasileiro vinha numa curva ascendente de aumento da população carcerária, aumentando numa proporção muito maior que o número de vagas”, disse. Com audiência de custódia, segundo Guerreiro, foi possível fazer o achatamento da curva de crescimento da população carcerária brasileira e estabilizar os números desde 2015, permitindo atuar, agora, em prol da população que ainda está encarcerada.
Assista aqui na íntegra.
Acordo de cooperação
O CNJ e a APT assinaram, em outubro de 2019, Termo de Cooperação Técnica para promover e implantar ações voltadas à prevenção e ao combate à tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes em situações de privação de liberdade. Citando estudos já realizados sobre o tema da violência no ato da prisão, inclusive quanto ao baixo percentual de encaminhamentos para apuração, o conselheiro destacou que os dados sobre o tema ainda são baixos no sistema de acompanhamento do CNJ. “Apesar de outros estudos apontarem um percentual significativo de violência policial no momento da prisão, os dados extraídos do Sistema Nacional de Audiência de Custódia (SISTAC), do CNJ, contabilizando informações de 2015 a 2020, registram que houve indícios de tortura e maus-tratos em apenas 5,65% das mais de 725 mil audiências registradas.”
O acordo entre o CNJ e a APT se dá no âmbito do programa Fazendo Justiça, parceria entre o CNJ e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com apoio do Ministério da Justiça e Segurança Pública, para enfrentamento de problemas estruturais no sistema penitenciário e socioeducativo do Brasil. As ações sobre audiência de custódia têm o aporte técnico do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) na execução.
A APT é uma organização internacional de direitos humanos, com sede em Genebra, Suíça, e com um Escritório para a América Latina na Cidade do Panamá, Panamá. A associação trabalha mundialmente para prevenir a tortura e outros maus-tratos, promovendo visitas de monitoramento preventivas a todos os lugares de privação de liberdade.
Carolina Lobo
Agência CNJ de Notícias