Joaquim Falcão*
“O juiz, ao expressar em cada sentença o sentimento de justiça legalmente fundamentado, deve avaliar se, além de dirimir o conflito, a decisão contribui ou não para maior eficiência e melhor ética do próprio Judiciário”
Engana-se quem acredita que a tarefa do juiz é apenas julgar. Resolver o litígio entre as partes. Essa é apenas a primeira, embora fundamental. A partir dela, porém, escondem-se outras, nem sempre visíveis a olho nu, mas também fundamentais. É o que está ocorrendo hoje, por exemplo, no caso Varig.
Um importante teórico do direito, Luhmann, diz que a tarefa do Judiciário não é simplesmente produzir sentenças, mas produzir sentenças que sejam aceitas e implementadas pela sociedade. Ou seja: sentenças inviáveis, não. E mais. Que a implementação aumente a paz social. Para ele, o juiz é um criador de paz. Sem isso, não se legitima.
Acredito também que, no Brasil de hoje, o juiz, ao expressar em cada sentença o sentimento de justiça legalmente fundamentado, deve avaliar se, além de dirimir o conflito, a decisão contribui ou não para maior eficiência e melhor ética do próprio Judiciário. Deve perguntar se a decisão contribui ou não para atender às expectativas que a sociedade tem em relação ao Judiciário. Se a sentença retarda ou não a decisão definitiva. Se a ética é transparente. Além de criador da paz social, o juiz deve ser também pró-ativo agente da Reforma do Judiciário.
O juiz do caso Varig tem outra importante tarefa além dessas. Tem que moldar, interpretar e implementar uma nova instituição jurídica: a lei de recuperação de empresas. Tem que se perguntar se as decisões relativas à Varig e aos credores contribuem ou não para que a nova lei saia do texto e entre na vida. E se essa vida mantém a atividade produtiva e reduz o dano coletivo, econômico e social de uma falência. Se assim for, então sim, o juiz ajudou a moldar o futuro. Aliás, Saint-Exupéry já dizia que o problema do futuro não era o de apenas antevê-lo, mas, sobretudo, o de viabilizá-lo. O que não é fácil. Sobretudo quando a expectativa social é grande.
A segunda edição da pesquisa Recuperação de Empresas, promovida pela Deloitte, comprova que o empresariado continua confiante na Lei 11.101. De fato, 94% acreditam que a lei aumenta a possibilidade de recuperação da empresa, 86%, a de manter empregos e 82%, a de recuperar créditos. Contudo, ao contrário do que sugerem as pesquisas, nem sempre os empresários são favoráveis à nova lei em casos concretos.
Foram e são ainda muitos os interesses contrários à recuperação da Varig. Para algumas das principais empresas aéreas concorrentes, por exemplo, era melhor que a Varig falisse. Diminuiria a concorrência. Por isso não deram lances nos leilões. Apostaram e perderam na inviabilidade da nova lei. Fortes pressões, com base nas artimanhas do direito processual, e às vezes até mais do que meramente legais, são então feitas sobre o juiz. A propósito, a nova Varig foi a única que aumentou seu market share em outubro: de 4,3 % para 5,08%. Sem contar que, com a Varig falida, seus concorrentes redistribuiriam gratuitamente entre si, via Anac, as linhas aéreas e, sobretudo, os slots nos aeroportos.
A imensa pressão sobre o juiz se traduz em imensa batalha de doutrinas jurídicas. Imensa porque versa sobre temas novos, colocados pela nova lei, em relação aos quais inexiste jurisprudência que possa balizar a decisão. Nesse cenário, duas grandes questões se colocam. Até que ponto o poder normativo das agências reguladoras se sobrepõe às decisões judiciais? Até que ponto o princípio da sucessão trabalhista é princípio absoluto e aplicável nos casos de recuperação de empresas?
Não são questões fáceis de resolver. Pressões econômicas transformadas em doutrinas jurídicas exigem do juiz uma quase sobre-humana determinação de implementar o bem comum. De fazer viver a lei. Mais ainda. Exige um comportamento ético, passado e presente, exemplar. Uma vontade inabalável. Exige também uma pressão arterial à prova de bala. Graças a Deus, no caso da Varig, este magistrado existe. É o juiz Luiz Roberto Ayoub, da 8ª Vara Empresarial, que honra o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Um verdadeiro viabilizador do futuro.
O que neste caso pioneiro significaria a falência da Varig, e talvez da própria lei de recuperação de empresas, foi equacionado pelo juiz Ayoub. Estamos no período crucial de construir uma nova prática econômica, repensando a sua forma jurídica. E o juiz é o principal construtor.
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(*) Joaquim Falcão é diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (RJ) e membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)