Joaquim Falcão*
O Presidente da República acabou de regulamentar, por decreto, a qualidade do atendimento ao consumidor prestado pelos call centers. Quem neste país já não sofreu ao telefone tentando se informar, tirar dúvidas, reclamar, suspender ou cancelar um serviço regulado – sejam serviços públicos concedidos, como os de energia, telefonia e gás, ou atividades privadas reguladas, como os planos de saúde? Ao tentar atender a uma demanda diária de milhões de brasileiros com este decreto, o Presidente ocupa um vácuo político.
A questão institucional que se coloca é: Por que o Presidente da República – a autoridade máxima da administração pública – tem que regular ele próprio os serviços regulados que usam call centers? Não seria esta uma tarefa para setores da administração pública de menor hierarquia e maior especialização? Para as agências reguladoras, por exemplo? A Presidência tem competência para regulamentar. Mas as agências também têm e poderiam tê-la usado com maior eficiência. Por que, então, o Presidente, e não as agências, a dar prioridade à regulamentação dos call centers? Receio que a resposta seja: As prioridades da pauta das agências reguladoras não são as mesmas da pauta do povo, dos consumidores. Esta distância não faz bem a ninguém.
Basta atentarmos para o atual debate jurídico-político sobre as agências reguladoras. A pauta é tomada pela crítica ou defesa do mérito genético das agências, como legado do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Ou então pelo grau de autonomia que as agências deveriam ter em relação ao Poder Executivo. Ou pela duração do mandato e pela disputa pelos cargos de direção. Mais ainda: importantes correntes doutrinárias consideram que a missão das agências é apenas a de regular e fiscalizar as empresas reguladas. E não a de defender direitos dos consumidores. Se esta corrente prevalecer, o dano às agências será irreparável. No mínimo, elas dependerão cada vez mais do apoio das empresas reguladas.
Esta corrente cria um vácuo político fundamental ocupado, muita vez, por juízes de primeira instância tentando defender consumidores, sempre debaixo da crítica – das empresas ou das próprias agencias – de interferência indevida em outro Poder da República. Mas, agora, não são mais os juízes. O vácuo deixado pelas agências foi ocupado pela própria Presidência da República.
No fundo, é como se dois times antagônicos disputassem a prioridade de ação em relação aos serviços regulados. De um lado, agências e empresas. De outro, Presidência e consumidores. O resultado é óbvio: a crescente legitimação deste e a crescente deslegitimação daquele. Sem o apoio do consumidor dos serviços, as agências jamais terão a autonomia que pretendem e precisam ter. Ao distinguirem em sua própria missão a regulamentação das empresas da qualidade do atendimento aos consumidores, as agências se afastam de sua finalidade verdadeira. O consumidor vai se aliar aos PROCONs, ao Ministério Público, ao Ministério da Justiça, às associações comunitárias e aos juízes. É este o modelo que se quer? Creio que não. A sociedade quer a agência eficiente e responsável pela qualidade do fim. E não apenas pela qualificação dos meios.
É evidente que as agências se preocupam com a qualidade dos serviços e fazem esforços enormes para melhorá-los e expandi-los. Mas o sofrimento diário dos brasileiros, falando com máquinas em cada telefonema, tentando comunicar-se com as empresas reguladas, indica uma só evidência: estes esforços têm sido insuficientes. Nem mesmo o discurso verdadeiro de que no passado era pior e que as agências permitiram uma expansão, universalização mesmo, destes serviços atenua o sofrimento do usuário do serviço. A dor de ontem não alivia a de hoje.
Pode até acontecer que o decreto da Presidência, como tantas leis neste país, tenha reduzida eficácia. Qualidade dos serviços não se obtém por decreto. Depende de desenvolvimento tecnológico, recursos financeiros, formação de pessoal e de muito mais. Mas não é difícil calcular o custo do vácuo político ou da insuficiência operacional das agências. Quantos telefonemas não satisfatoriamente atendidos pelas empresas de energia, aviação, transporte, telefonia etc. um brasileiro médio realiza por mês? Sem dar prioridade à pauta do sofrimento do público, as agências dificilmente legitimarão seu poder. É no contexto da satisfação quotidiana do consumidor que as opções jurídico-políticas – isto é, a legislação e jurisprudência sobre a consolidação ou não da autonomia das agências reguladoras – serão feitas pelo Judiciário, Congresso, e Executivo. O Presidente já se posicionou.
(*) Joaquim Falcão é conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
Artigo publicado em 18 de agosto de 2008.