Trazer luz sobre as diferentes infâncias é o propósito do novo projeto coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Diversidades das Primeiras Infâncias destaca as especificidades dessa faixa etária, com destaque para as diferenças entre as infâncias das crianças indígenas, negras, deficientes, de terreiro e em situação de rua. O projeto é fundamentado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completa 34 anos neste sábado (13/7). A norma foi sancionada para que fossem garantidos os direitos fundamentais de todas as crianças, independentemente de classe social, raça, etnia, religião ou gênero.
A implementação do projeto está incorporada ao Pacto Nacional pela Primeira Infância, que completou cinco anos em junho e foi renovado por seus signatários. Para o gestor do Pacto e juiz auxiliar da Presidência do CNJ Edinaldo César Santos Junior, é fundamental que o Poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário, juntamente com a sociedade civil, conheçam as diferentes infâncias brasileiras e estejam em constante articulação na elaboração de políticas públicas específicas para elas.
O juiz ressaltou que a primeira infância – o período de zero a seis anos de idade – é um período crucial para o desenvolvimento humano, resguardado pelo Marco Legal da Primeira Infância (Lei n. 13.257/2016), que traz um compromisso com a valorização da diversidade da infância brasileira. “A lei reconhece a necessidade de considerar as diferenças entre as crianças em seus contextos sociais e culturais, combatendo as desigualdades no acesso aos bens e serviços essenciais para o seu desenvolvimento integral”, afirmou.
Para a efetivação desse compromisso, a gestora adjunta do Pacto e juíza auxiliar da Presidência do CNJ Rebeca Mendonça Lima, informou que o CNJ promoverá, no decorrer do segundo semestre de 2024, as chamadas Semanas das Diversidades nas Primeiras Infâncias, as quais serão realizadas nas cinco regiões do Brasil, com foco específico para determinada infância.
“Para cada semana, serão identificados os estados brasileiros que possuem o maior número de crianças, com até seis anos, da diversidade a ser trabalhada, bem como os principais atores, locais e nacionais, que desenvolvem atividades focadas nessa população”, explicou. De acordo com Rebeca Mendonça, a ideia é conhecer as dificuldades enfrentadas por essas crianças e elencar as possíveis soluções que o Estado pode proporcionar para amenizar os problemas estruturais.
Após a realização de cada semana, a juíza adiantou que os atores envolvidos assinarão uma carta de compromisso, em que estarão listadas as ações a serem executadas por cada um, para a continuidade aos trabalhos. “O objetivo dessa carta é possibilitar o acompanhamento das atividades assumidas ao longo do tempo, mensurando os impactos do trabalho na melhora da vida daquela primeira infância”, explicou.
Primeira Infância Negra
Ainda de acordo com o juiz Edinaldo César Santos Junior, o Brasil é composto por uma sociedade “racializada” que, em regra, não faz distinção das pessoas brancas, mas racializa pessoas negras desde muito cedo. “Embora nenhuma criança nasça racista, acredita-se que as crianças reproduzem o comportamento dos adultos que racializam pessoas por questões fenotípicas. Portanto, uma criança de pele negra nascida no Brasil vai se perceber, logo na primeira infância, não apenas como ‘uma criança’, mas como ‘uma criança negra’, diferentemente de uma criança branca que não é racializada”, exemplificou.
O magistrado explica que uma criança negra, desde os primeiros anos de vida, sofre microagressões cotidianas relacionadas ao tipo de cabelo, à cor de pele, ao tipo de nariz ou ao tipo de boca. “Segundo estudos desenvolvidos em Harvard, o marcador racial é o segundo marcador que mais vai trazer marcas na primeira infância, ficando atrás apenas do marcador pobreza”, pontuou.
“No período do jardim de infância, as crianças já demonstram atitudes raciais que são mantidas por adultos em nossa cultura. Elas aprenderam a associar alguns grupos com status mais alto do que outros. Por isso, é necessário que o quão antes a sociedade brasileira reflita sobre essas questões para que esse tipo de reprodução seja interrompido”, declarou.
Primeira Infância com deficiência
Em se tratando da temática da criança com deficiência, o juiz Edinaldo César Santos Junior ressaltou a Lei n. 14.880/2024, que alterou o Marco Legal para instituir a Política Nacional de Atendimento Educacional Especializado a Crianças de Zero a Três Anos (Atenção Precoce). A norma também determina a prioridade de atendimento em programas de visitas domiciliares a crianças da educação infantil com sinais de alerta para o desenvolvimento. “Imaginando que uma criança tenha algum tipo de deficiência ao nascer, em alguns casos é possível reverter o quadro se a criança receber o atendimento adequado no momento oportuno”, reforçou.
Sobre crianças com o Transtorno do Espectro Autista (TEA), existe grande judicialização no país pedindo tratamento para esses meninos e meninas. “Os juízes estão sendo levados a refletir e estudar sobre o TEA. A criança autista precisa ter um olhar diferenciado para ela em termos de inclusão e acessibilidade”, afirmou.
O magistrado adiantou que a Semana da Primeira Infância com Deficiência está prevista para ser realizada no estado de Sergipe, em outubro deste ano. De acordo com ele, o estado foi escolhido porque, segundo dados da Secretaria Nacional da Pessoa com Deficiência, é o que apresenta o maior número de pessoas com deficiência no Brasil. “Além disso, 51% das pessoas com deficiência residentes naquele estado são crianças ou adolescentes”, afirmou.
Primeira Infância de terreiro
De acordo com o juiz Edinaldo César, é importante destacar que a população de terreiro é um dos 28 povos de comunidades tradicionais existentes no Brasil e todos devem ser respeitados. Nesse sentido, o Rio Grande do Sul é o estado brasileiro com o maior número de terreiros cadastrados.
“Uma criança que nasce e cresce no contexto de terreiro no Brasil sofre preconceitos e discriminações por ter determinadas obrigações referentes ao contexto em que vivem. Existem, ainda, casos de pedidos de retirada de guarda de uma criança porque o pai ou a mãe leva o filho para ambientes de terreiro, e o outro genitor discorda”.
Para ele, isso significa que a falta de liberdade religiosa afeta negativamente crianças que nascem nesse ambiente. “Queremos trazer mais entendimento e liberdade para as culturas dos povos tradicionais encontrados em nosso país”, observou.
Primeira Infância Indígena
Edinaldo César ressaltou ainda que a criança indígena tem uma infância diferenciada, já que desde muito nova precisa trabalhar seguindo os preceitos da sua cultura. “O Estado não deve interferir na cultura indígena, mas precisamos entender até que ponto é possível oferecer, com ações específicas, uma melhor qualidade de vida para a criança indígena, após conhecermos as principais demandas do seu povo”, comentou.
Primeira Infância em Situação de Rua
Quanto à criança em situação de rua, o juiz enfatizou que ela é a vítima “do mais alto nível de vulnerabilidade”, pois, em muitos casos, é uma criança que foi “privada do direito a um lar, uma mesa farta, o direito de brincar e o direito de ir à escola”.
O magistrado afirma que, embora não seja incomum identificar adolescentes que frequentem a escola e vivam em situação de rua, muitas crianças têm na escola o único lugar em que podem se alimentar. “Estamos em busca de ações eficazes para que essas crianças sejam acolhidas pela sociedade nas suas diferenças, nas suas vulnerabilidades, no sentido de fazer com que elas tenham os mesmos direitos e sejam protegidas para que vivam a plenitude da infância como qualquer outra criança”.
Avanços
O Poder Judiciário publicou 60 atos normativos relevantes para a infância e juventude nos últimos anos, sendo 32 Resoluções, 13 Recomendações, 3 Recomendações conjuntas, 3 Portarias, 5 Provimentos e 4 Instruções Normativas. Entre eles, destacam-se a Resolução CNJ n. 470/2022, que institui a Política Judiciária Nacional para a Primeira Infância; e a Resolução CNJ n. 369/2021, que estabelece procedimentos e diretrizes para a substituição da privação de liberdade de gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência, conforme o Código de Processo Penal, entre outras.
Texto: Thays Rosário
Edição: Lenir Camimura
Agência CNJ de Notícias