No Amazonas, processos históricos lançam luz a casos “romantizados” pelo imaginário popular

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Foto: Marcus Phellipe
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O “Arquivo Central Júlia Mourão de Brito”, do Tribunal de Justiça do Amazonas, guarda processos de outros séculos que permitem esclarecer, por meio dos registros contidos nas páginas de procedimentos judiciais, a verdade sobre acontecimentos passados. Entre as centenas de processos de valor histórico preservadas pelo arquivo do Judiciário Estadual, estão os autos sobre a morte da violinista Ária Paraense Ramos, aos 18 anos de idade, após ser atingida por um tiro durante um baile de Carnaval no antigo Ideal Clube, no ano de 1915.

A morte da musicista, tratada por muitos anos pela sociedade amazonense como um mistério e divulgada em várias versões não confirmadas, se tornou lendária e há mais de um século alimenta o imaginário coletivo, transportando as pessoas ao romantismo da Belle Époque (1870-1915), período econômico da exploração da borracha vivenciado pela alta sociedade amazonense.

Após sua morte, a jovem Ária Ramos foi eternizada por uma escultura de mármore, em tamanho natural e que retrata uma moça segurando um violino. A estátua foi instalada no local de seu mausoléu, no Cemitério São João Batista, em Manaus, e que ainda hoje é um local de visitação. Para custear a escultura, uma comissão de artistas e musicistas da época organizou eventos e saraus e, com o valor arrecadado, foram contratados os serviços da marmoraria de Cesare Veronesi, que a encomendou a um artista de Carrara, na Itália. A estátua só foi entregue à população, ainda consternada com o trágico evento, no ano de 1916.

O processo sobre o caso da morte da jovem, que integra o arquivo histórico do TJAM, foi encontrado há alguns anos, durante a catalogação de documentos do século 19, por uma equipe de estudantes de pós-graduação do curso de História da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e se tornou objeto de estudo do analista judiciário do TJAM e mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), Juarez Clementino da Silva Júnior, que escreveu o artigo “Desmistificando o Caso Ária Ramos (1915)”.

A peça processual relativa ao caso (com data de autuação em 29 de abril de 1915) contém a denúncia de homicídio formulada pelo Ministério Público do Amazonas contra os jovens Mário Travassos de Souza e Ilydio de Carvalho Barroco, a qual viria a ser rejeitada pelo magistrado Hermes Afonso Tupinambá, juiz do então 2.º Distrito Criminal. “O processo, na realidade, tem o Inquérito Policial, a peça de denúncia do MP e a decisão do magistrado pela não aceitação do pedido do Ministério Público contra os dois rapazes. Não houve, sequer, a ação penal contra os indiciados Mário Travassos de Souza e Ilydio de Carvalho Barroco”, explica o professor Juarez.

“Após avaliar os documentos acostados durante a fase investigativa, bem como a petição do advogado dos dois indiciados, laudo pericial e depoimentos de pessoas presentes à festa onde Ária foi morta, testemunhas do disparo e aquelas arroladas pela defesa dos dois foliões envolvidos, o juiz Tupinambá não considerou dolo e materialidade na denúncia, ou seja, a ocorrência de crime, mas sim a ocorrência de uma fatalidade, não estabelecendo ação penal”, explica Juarez.

Conforme o professor e historiador, ao contrário das narrativas que prevaleceram por mais de um século, não se tratou de crime passional ou vingança por parte de Mário contra Ária. Por meio da leitura do inquérito, da peça de denúncia e dos testemunhos contidos nos autos, Juarez Silva reconstitui os acontecimentos daquela madrugada de Quarta-feira de Cinzas do ano 1915, no tradicional Ideal Clube, durante o baile da agremiação “Paladinos da Galhofa”, do qual Ária Ramos era integrante.

O autor confesso do disparo foi o jovem Mário Travassos, de 16 anos de idade. Em seu depoimento, constante dos autos, ele conta que, momentos antes do fatídico incidente, estava de saída do baile, descendo as escadas, perto das duas horas da madrugada, quando deu por falta de umas luvas que compunham sua fantasia e retornou para buscá-las. Alguém informou que a peça estaria com Ilydio Barroca, jovem de 19 anos, que tinha ido fantasiado de caçador e havia levado também duas armas que completavam sua indumentária.

Mário foi até Ilydio, que indicou que as luvas estavam em uma bolsa sobre a mesa. Mário abriu a bolsa, e ao tentar retirar as luvas notou que uma estava enganchada em um revólver. Curioso e na falta de prudência e bom senso, típicas da idade, retirou o revólver e se pôs a manuseá-lo, abriu o tambor e estando ele aparentemente vazio, não percebeu uma bala ainda inserida. Segundo o depoimento de Mário, de brincadeira ele apertou o gatilho na direção oposta a que se encontrava Ária, ou seja, não apontou para ninguém e se assustou com o disparo, e mais ainda ao perceber que Ária havia sido atingida.

No inquérito não foi registrado teste balístico, mas a narrativa indica que houve, em verdade, um ricocheteamento do projétil. O fato foi presenciado por muitas pessoas, que se manifestaram no inquérito policial, totalizando 18 pessoas ouvidas na condição de testemunhas ou informantes.

Memória x história

Para Juarez, a descoberta da peça processual do “Caso Ária Ramos” é um bom exemplo que ajuda a distinguir o que é memória do que é História. “A memória é uma construção pessoal ou coletiva e, não necessariamente respeita os fatos científicos e as evidências. A História, por mérito e formação dos historiadores, evita esse tipo de situação, porque os pesquisadores trabalham sobre as evidências e fontes oficiais. Isso acaba, muitas vezes, tornando a história mais cinzenta e menos interessante, mas necessária. Nesse caso da violinista Ária Ramos, por mais de um século, não tínhamos história, tínhamos memória. Agora temos os dois”, afirma Juarez.

Segundo o historiador, há várias versões sobre o caso, tratado por muito tempo como um “mistério” e divulgado com versões romantizadas, uma delas afirma que após ser atingida pelo tiro, a violonista com “seu corpo franzino e seus cabelos dourados” foi carregada por foliões até a Santa Casa de Misericórdia, mas a Ária da vida real não era loira.

“Organizei o que foi obtido no inquérito, principalmente, em cima de informações e testemunhas arroladas na peça processual”, explica Juarez Clementino. Entre os depoimentos, o historiador verificou personagens da alta sociedade local que, por essa razão, se encontravam no baile de Carnaval, promovido pela banda “Paladinos da Galhofa” no Ideal Clube.

No rol de pessoas ouvidas, figuram nomes como o médico Miranda Leão, que prestou os primeiros atendimentos à musicista após o tiro e também assinou o laudo de necrópsia. Outro nome, entre as testemunhas ouvidas, é de Almir Neves, de reconhecida família de comerciantes portugueses estabelecida há séculos no Amazonas. “Esse fato é muito ligado à elite manauara, foi algo que aconteceu num clube da elite da cidade, com uma pessoa da elite e que ganhou contornos de autopromoção social. Ser alguém que estava presente na morte de Ária Ramos, significava uma proximidade com a elite e muita gente foi, inclusive, acrescentando detalhes para mostrar intimidade com a elite, e não deixavam de sair das páginas dos jornais com esses novos detalhes que funcionavam como upgrade social”, afirma o professor Juarez.

Fonte: TJAM

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