Mulheres em contato com a privação de liberdade atuam para transformar vidas

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Em um contexto marcado por desigualdades sociais, incluindo a de gênero, a vivência no campo da privação de liberdade é especialmente desafiadora para mulheres, sejam elas magistradas, servidoras, mães de pessoas encarceradas ou aquelas que já passaram por uma unidade prisional. No mês do Dia Internacional da Mulher, conversamos com mulheres de diferentes regiões do país que conhecem de perto essa realidade e enfrentam os desafios com obstinação e resiliência.

Além das 42 mil mulheres e meninas privadas de liberdade no país, são as mulheres as principais impactadas quando alguém da família vai para a prisão: são o grupo predominante nas visitações e na rede de apoio durante e após o cárcere. Além disso, as mulheres também são parte importante da rede de profissionais que trabalham com políticas públicas no campo da privação de liberdade, enquanto no Judiciário o número de magistradas com atuação no campo penal e no campo socioeducativo vem aumentando nas últimas décadas, seguindo maior equalização de gênero na força de trabalho do Judiciário.

Para além do cárcere

A vida de qualquer pessoa que deixa o sistema prisional para retomar a vida em liberdade é repleta de obstáculos. É para deixar esse caminho menos árduo e facilitar o acesso a direitos básicos que trabalha a assistente social paraibana Anna Paula Batista. Ela é gerente do Escritório Social  em João Pessoa (PB), principal equipamento de atenção às pessoas que tiveram contato com o cárcere e seus familiares. A política conta com mais de 48 unidades pactuadas em 22 unidades da Federação, totalizando mais de 17 mil atendimentos, e é fomentada pelo CNJ com o apoio do programa Fazendo Justiça, parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e importante apoio do Ministério da Justiça para acelerar transformações no campo da privação de liberdade.

“Nosso objetivo é promover a dignidade dessas pessoas, possibilitando novas trajetórias por meio do acesso a serviços e direitos previstos na lei”, aponta. Sem esquecer dos desafios na execução da política e no gerenciamento desse tipo de equipamento, Anna Paula conta que são muitos os casos de vidas ressignificadas por meio da atuação dos Escritórios Sociais. Um deles é o de uma egressa do sistema que lidava com sequelas de covid-19 e questões de saúde mental. Por meio do Escritório, conseguiu atendimento de saúde na rede pública, inscrição em programas socioassistenciais e, graças a isso, a sonhada reinserção no mercado de trabalho e retomada do contato com a família.

Anna Paula comenta, ainda, sobre a importância de ter mulheres em cargos de liderança e à frente da execução das políticas penais. “Eu sou uma mulher negra, jovem e que vem da periferia, então são muitos enfrentamentos cotidianos para ultrapassar as desigualdades e ocupar espaços que ainda são majoritariamente masculinos. Por isso é muito importante que mulheres, especialmente mulheres negras, assumam esse papel de liderança como o que estou hoje, que é um lugar que historicamente nos foi negado, mas que ocupamos com comprometimento e sensibilidade.”

Atenção do Judiciário

O empenho de Anna Paula encontra eco também na magistratura. Laura Costeira assumiu o Juizado da Infância e Juventude de Macapá durante a pandemia, depois de anos de atuação no interior do Amapá. Em sua primeira experiência em uma unidade especializada, Laura ressalta a importância de promover a garantia de direitos e os objetivos da socioeducação. “Aqui nós não trabalhamos pensando no passado, no ato infracional que foi cometido. Trabalhamos com o futuro. Queremos saber o que será daqui para a frente e transformar essa vida.”

A juíza está entre os 38,8% de magistradas em atividade atualmente, em um Poder Judiciário ainda composto em sua maioria por juízes do sexo masculino. Pesquisas recentes buscam analisar o perfil das mulheres magistradas e indicar caminhos para o aumento dessa participação.

Laura defende a importância da atuação próxima às adolescentes e aos adolescentes e seus familiares, conhecendo a realidade das unidades e o contexto de cada um. “Uma parte fundamental do trabalho é estarmos dentro das unidades, nas inspeções e nas audiências concentradas, conversando diretamente com adolescentes, com famílias e com a equipe técnica.” As audiências concentradas no sistema socioeducativo são uma estratégia para garantir maior agilidade na avaliação das situações pessoais, processuais e procedimentais que envolvem adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas no Brasil, privilegiando o espaço de escuta da família, da rede, de adolescentes socioeducandos e dos profissionais. A iniciativa, que segue a Recomendação CNJ n. 98/2021, também tem o apoio técnico do programa Fazendo Justiça.

“Nesse cotidiano, dentro das unidades eu frequentemente escuto o apelo de mães e responsáveis sobre as perspectivas de futuro dos adolescentes. Um caso que me marcou muito foi o de um jovem que, a partir do desejo de retomar a vida em liberdade, foi alfabetizado durante a execução da medida”, ressalta a juíza. O CNJ, por meio do Fazendo Justiça, também trabalha ações de fomento e valorização de iniciativas que desenvolvem e incentivam a leitura no sistema penal e socioeducativo.

Familiar e sobrevivente

O apelo e o engajamento das mães, como ressaltou Laura, pode se mostrar fundamental para mudar a trajetória de filhos e filhas que passam pelo sistema prisional. Eliene Vieira é “mãe de um sobrevivente do cárcere”, como ela mesma se apresenta. Mãe solo e principal provedora da família, o encarceramento do filho trouxe uma série de repercussões para a vida de Eliene, mas também marcou o início de uma vida dedicada à defesa dos direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade. Tanto que se transformou na primeira familiar de pessoa egressa a integrar a equipe do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro, onde vive.

“Minha atuação é quase totalmente pautada no que vivi no cárcere, ainda que extramuros. Hoje, meu filho não é mais um interno do sistema. É um sobrevivente. E é com o meu trabalho que devolvo todo o conhecimento que adquiri nessa caminhada, assim como o apoio e o acolhimento nos momentos difíceis”, conta.

Atuando diretamente com a prevenção e o combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes em espaços de privação de liberdade, Eliene ressalta, como mãe que vivenciou a experiência de ter um filho encarcerado, a importância de apoiar outras mulheres com vivências parecidas. “Uma mulher não precisa ser mãe para entender a dor da outra, olhar e se enxergar na outra. É uma coisa boa a gente poder se enxergar na outra e saber que a gente tem a outra para se apoiar.”

A privação de liberdade de gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência impacta não apenas a vida dessas pessoas, mas também a de filhos, filhas e outras pessoas dependentes. Para incidir diretamente nessa situação, o CNJ aprovou a Resolução CNJ n. 369/2021, que estabelece procedimentos e diretrizes para apoiar o Judiciário a substituir a privação de liberdade por prisão domiciliar de gestantes, mães, pais e responsáveis por crianças e pessoas com deficiência. Além da normativa, o CNJ lançou manual com orientações práticas para a identificação e o registro de informações sobre essas pessoas, além de diretrizes para o cumprimento da resolução. Dados referentes a esses grupos estão disponíveis em um painel on-line que permite monitorar informações de interesse referentes a esse público em diferentes fases processuais.

Por uma vida digna

O fomento ao trabalho digno e à geração de renda — inclusive durante o cumprimento da pena — é fundamental para a garantir a retomada da vida em liberdade de pessoas egressas. Responsáveis pelo sustento de quase metade dos lares brasileiros, a recolocação no mercado de trabalho é especialmente importante para as mulheres.

Para a potiguar Amanda Karoline, foi o que possibilitou novas perspectivas. Por meio do trabalho dentro da unidade prisional, Amanda conseguiu abreviar o tempo de cumprimento da pena no regime fechado e, posteriormente, progredir para o semiaberto, em que atualmente cumpre a pena monitorada eletronicamente por uma tornozeleira.

Dados recentes do Poder Executivo, no entanto, apontam que presos que trabalham são exceção no sistema penitenciário brasileiro. Dos 655 mil encarcerados, cerca de 161 mil têm ocupação — o que representa apenas 25% do total. Destes, 148 mil são homens e apenas 12 mil são mulheres. O CNJ vem trabalhando o tema em parceria com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e apoio técnico do programa Fazendo Justiça, atuando pela implantação de políticas e serviços penais com foco na oferta de qualificação e acesso ao trabalho decente.

Também incentivada por programas de leitura no cárcere, Amanda trabalha na divulgação de um livro que escreveu quando ainda estava no regime fechado. “Falo do meu passado não por me orgulhar dele, mas porque me orgulho da mulher que me tornei. Espero que minha história ajude tantas outras mulheres que passaram pelo sistema”, conclui Amanda.

Ao longo do mês de março, com a campanha #Elasfazemhistória, o CNJ dá visibilidade à multilateralidade e ao protagonismo femininos, assim como à participação feminina na construção da história do mundo e do dia a dia, pela voz das mulheres.

As histórias de Eliene, Anna Paula, Laura e Amanda têm em comum, além dos desafios próprios de experienciar ser mulher, o comprometimento para combater desigualdades e transformar vidas  — as próprias e as de outras pessoas — que tiveram contato com a privação de liberdade.

 

Sobre o Fazendo Justiça

Conheça as 29 ações simultâneas realizadas pelo CNJ por meio do programa Fazendo Justiça

Texto: Natasha Cruz
Edição: Nataly Costa e Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias

Macrodesafio - Aprimoramento da gestão da Justiça criminal