Alvo de assédio, uma militar foi reintegrada à Marinha após ser desligada sem o devido processo. Termos como “galinha” e “chuchuquinha” foram usados por superiores, condenados por dano moral. A decisão, da Justiça Federal gaúcha, venceu a categoria Direito das Mulheres do I Concurso Nacional de Decisões Judiciais e Acórdãos em Direitos Humanos.
Aprovada em seleção para oficial temporário, a autora ingressou no cargo de pedagoga em 2009. Cenas de assédio moral foram rotina até o afastamento da militar, três anos depois. A vítima adquiriu distúrbio psiquiátrico durante o serviço na Capitania dos Portos de Porto Alegre (RS).
Mesmo sem comando sobre a instrutora, o capitão de outro setor revogava ordens dadas por ela, encarregada de divisão própria, aos subordinados dela. Cobranças indevidas também foram feitas pelo acusado, que costumava chama-la de “chuchuquinha” e passar o braço sobre seus ombros. Apesar de perseguir e pressionar a vítima, o militar a convidou várias vezes para saírem a dois — ora ao pé do ouvido, ora em público. Dizia à colega, noiva à época, que ninguém saberia.
Em certa ocasião, o então chefe da capitania chamou a autora de “galinha dos ovos de ouro”, o que causou riso entre ele e o capitão. Na primeira sexta-feira de 2012, ocorreu o episódio final. O comandante mandou a oficial entregar um documento às 18h30, duas após o fim do expediente. Como ela tinha marcado encontro com o noivo no mesmo horário, o capitão disse que cumpriria a tarefa e que ela fosse para casa. Logo após deixar a unidade, a militar recebeu ligação do superior, para saber sobre o documento. Contou que o colega fez a entrega, enquanto ela foi à padaria.
No dia seguinte, o comandante marcou audiência com a encarregada. Frente a quatro pessoas, o chefe exibiu filmagem dela tomando táxi para casa e, com base na mentira, aplicou pena de três dias de prisão. A militar tentou argumentar, em vão, que não causou prejuízo algum, nem agiu de má-fé. No mesmo momento, foi avisada que não teria o contrato renovado, no mês seguinte. Um colega a socorreu em seguida, prestes a tomar todos os comprimidos de tarja preta que tinha.
Exames constataram que a pedagoga desenvolveu depressão após a punição. Perito consultado na ação atestou “incapacidade total e temporária desde 01/2012”, com necessidade de medicação. A doença também foi diagnosticada por junta médica da Marinha, no afastamento. Com os pareceres, a oficial conseguiu ser reintegrada, para tratamento de saúde, em decisão liminar.
No julgamento, em 2014, o chefe da unidade alegou ter seguido regulamento disciplinar do órgão: a subordinada mentiu sobre ter saído e não cumpriu o dever. Por ser a oficial de serviço no dia, ela também só poderia deixar o posto após a saída dele. A expressão “galinha dos ovos de ouro”, sustentou o réu, deveu-se ao fato da seção da instrutora receber 70% do orçamento da capitania.
Por sua vez, o capitão disse não se lembrar de situação em que tenha revogado ordem dada pela oficial e que o contato com ela era profissional. Ele e o comandante, defendidos pela Advocacia-Geral da União, negaram qualquer desrespeito.
Nenhum argumento convenceu o juiz federal Roger Raupp Rios. “O conjunto da prova registra que, de fato, o tratamento do réu”, definiu o magistrado sobre o capitão, “para com a autora era debochado, machista, desrespeitoso.” Testemunhas confirmaram o assédio. “Outras mulheres servidoras militares relataram um ambiente de deboche, relacionado ao gênero da autora, produzindo situações difíceis e sensação de autoritarismo. Tudo em manifesta e direta contrariedade ao Estatuto dos Militares”, apontou o então titular da 4ª Vara Federal de Porto Alegre.
Os réus — União e os dois militares — foram condenados a pagar R$30 mil à vítima por danos morais. Rios considerou o termo galinha “expressão inegavelmente inadequada, independente do contexto”. O juiz manteve a reintegração da oficial, pois “a União não poderia ter licenciado a autora do serviço ativo sem prestar o devido tratamento.” Para ele, o afastamento tampouco atendeu ao devido processo legal. “A autora cumpriu a pena antes mesmo de exercer seu direito de defesa.”
Garantia de direitos – O concurso foi promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com Secretaria de Direitos Humanos (SDH) do Ministério da Justiça. A iniciativa destaca o papel de juízes na defesa dos direitos humanos. “É um reconhecimento que traz responsabilidade para a instituição, principalmente no momento atual, onde no mundo inteiro existe um mal-estar e uma resistência aos direitos humanos”, disse Roger Raupp, um dos vencedores.
A entrega do prêmio ocorreu no último dia 14, na sede do conselho, com presença da presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia. Qualquer cidadão, inclusive o responsável, pode indicar a decisão e inscrevê-la em até duas categorias – apenas um caso foi premiado em cada. Foram consideradas decisões em processos de primeiro e segundo grau, dadas por um juiz ou por colegiados, entre 25 de outubro de 2011 a 25 de outubro de 2016. Uma comissão julgadora de cinco membros, indicados pelo CNJ e pela SDH, afirmou em sentenças em 14 temas.
Isaías Monteiro
Agência CNJ de Notícias