Veja a íntegra do discurso proferido no Congresso Nacional pela presidente do CNJ, ministra Ellen Gracie, na abertura do ano judiciário, dia 2 de fevereiro.
Por Sua Excelência a Ministra Ellen Gracie Northfleet
Presidente do Supremo Tribunal Federal
e do Conselho Nacional de Justiça
Brasília, 2 de fevereiro de 2007.
No ano passado, compareceu a este mesmo Plenário o então Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Nelson Jobim, que proferiu mensagem de encaminhamento do Relatório de Atividades do Conselho Nacional de Justiça, nos termos do art. 103-B, § 4º, inciso VII, da Constituição Federal.
Era a primeira vez em que, formalmente, diante do Congresso Nacional, se enunciava um diagnóstico da situação do Poder Judiciário, enumeravam-se as atuações empreendidas pelo Conselho Nacional de Justiça e expressavam-se as recomendações consideradas oportunas ao aperfeiçoamento institucional.
Meu ilustre antecessor frisou, na abertura de sua fala, que não exercia apenas a obrigação constitucional. A data, disse ele, constituía marco na construção histórica das instituições nacionais. Marco a partir do qual se aprofundava o estado de direito, a democracia e a edificação de um Estado verdadeiramente republicano.
Alegra-me dar seqüência à manifestação de realismo positivo de meu colega.
Em ano e meio de atividade, o Conselho Nacional de Justiça demonstra que suas finalidades têm sido atendidas. A evidência de acréscimo da sua demanda é revelada pela curva ascendente dos expedientes protocolados ao longo desse período.1
A atuação do Conselho e de seus membros encontra-se detalhada no Relatório Geral que ora entrego formalmente ao Congresso Nacional. Seria fastidioso enumerar e tentar minudenciar todas as iniciativas que se sucederam. Faço apenas destaque para pontos que me parece devam merecer a especial atenção dos senhores parlamentares.
Desejo ressaltar, de modo particular, os esforços empreendidos pelo Conselho, no sentido de dar seqüência às medidas aprovadas por este Congresso, para o efeito de tornar o sistema judiciário brasileiro mais operante, célere e racional.
Neste sentido, a Lei nº 11.419/2006 estabelece as diretrizes para adoção do processo eletrônico.
E, tão importante quanto a aprovação da lei, foi a inserção de previsão orçamentária que habilita o Conselho a suplementar as eventuais deficiências de recursos dos Judiciários das unidades federadas, para a indispensável modernização de seus equipamentos.
Tenho a satisfação de comunicar que, a partir do próximo mês de março, 17 dos 26 tribunais estaduais estarão prontos para instalar e inaugurar varas-piloto de processo eletrônico. Dentre os juizados especiais federais, cerca de 80% já utilizam o processo virtual.
A redução de tempo e de custo é significativa. O impacto ambiental também. Apenas o Supremo Tribunal Federal movimentou, aproximadamente, 680 toneladas de papel durante o ano de 2006, considerado o protocolo de recursos e a remessa à origem dos feitos julgados.
Quero salientar que, ao longo dos estudos desenvolvidos, foi preocupação constante dos representantes e técnicos dos tribunais de justiça, federais e do trabalho garantir que a adaptação à nova metodologia não signifique um retraimento por parte dos profissionais pouco afeitos ao meio tecnológico. Tratou-se de criar ambiente amigável de transição entre o sistema tradicional e a inovação. E, tenho confiança que, assim como o povo deste país, sem distinção de escolaridade, assimilou prontamente e sem dificuldade o uso da urna eletrônica, também em breve espaço de tempo, qualquer eventual estranheza quanto ao novo sistema será superada.
Neste campo não é possível retroceder. O Brasil é fértil em soluções criativas de emprego da tecnologia. Elas estão de tal forma incorporadas no nosso dia-a-dia que não mais as percebemos como algo novo.
Pois bem, é chegada a hora de estender também à rotina judiciária a utilização da tecnologia disponível e de fácil acesso. Ela nos permitirá realizar muito melhor as tarefas meramente repetitivas e burocráticas que até agora assoberbam nosso corpo funcional. Ela proporcionará, sobretudo, uma velocidade de resposta à sociedade antes impensável.
Em 2003, demonstrei, em seminário internacional na Costa Rica, o sistema utilizado nos juizados especiais previdenciários, acessível on-line, via Internet. Na ação ordinária que selecionei para apresentar, apenas dez dias haviam se passado entre o ajuizamento e a sentença de primeiro grau, sem qualquer arranhão às garantias do devido processo legal.
Uma tal redução do tempo de resposta do sistema decorre da automação de todas as etapas não-criativas, de mero registro, comunicação ou impulso processual. Fica posto em relevo o tempo nobre do processo, aquele em que se produzem peças em que seja necessária a reflexão, a elaboração e o amadurecimento de entendimento. Este é o tempo em que os advogados das partes produzem seus arrazoados, o Ministério Público se manifesta ou os magistrados elaboram suas decisões.
Sabem os senhores e senhoras congressistas que, ao aprovarem a Lei nº 11.419/2006, deram ao Judiciário brasileiro a real possibilidade de vencer a morosidade que tem entravado a vida econômica do país e submetido à crítica impiedosa uma instituição que se legitimou, ao longo de nossa história, pela tradição de imparcialidade, de independência e de alta qualificação de seus integrantes. Guardaremos ciosamente estes valores básicos. Mas, no que diz respeito à eficiência, o Poder Judiciário será outro, após a progressiva implantação do processo eletrônico.
Outra das providências aprovadas por Vossas Excelências, a Lei nº 11.417/2006, que estabeleceu a súmula vinculante, também terá reflexos de profunda repercussão no modo como a sociedade, os poderes de Estado e o próprio judiciário se relacionam com o ordenamento jurídico em sua interpretação última.
O Visconde de Mauá, em sua Exposição aos Credores e ao Público2, editada em 1878, relata com aguda crítica uma de tantas querelas judiciais em que se viu envolvido.
"Falindo os devedores, diz ele, cobrou a casa os títulos de que estava de posse até a importância dos seus adiantamentos, e entregou o saldo aos administradores da massa."
No entanto, sentença do Tribunal do Commercio veio a confiscar parte desses adiantamentos.
Encaminhado recurso, retoma o Visconde, o Supremo Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos, fulminou essa sentença, por injustiça notória e nulidade manifesta.
Porém, uma vez anulada a sentença, em novo julgamento, um Tribunal inferior reexaminou a causa e, por um único voto de desempate, o do presidente do tribunal, fez tábula rasa do voto unânime do Supremo Tribunal de Justiça e o Banco Mauá perdeu a causa ! Será sensato este regimen judiciário ? indaga o estupefato Mauá.
De fato, não pode ser operante um sistema judiciário em que a mesma questão de direito receba, indefinidamente, diversa e variada interpretação, ao sabor das filiações doutrinárias dos julgadores.
Pois bem, é a esse descrédito da lógica jurídica, a essa insegurança quanto ao que seja afinal a lei do país, que põe cobro a medida aprovada por este Parlamento e consubstanciada na Lei nº 11.417/2006.
A partir de agora, quando o Supremo Tribunal Federal houver definido formalmente uma questão de direito, aplicando-lhe o efeito vinculante e fazendo-a inserir no enunciado de sua súmula, pacifica-se a discussão nos juízos inferiores e, sobretudo, deverão respeitar a interpretação fixada todos os agentes públicos, evitando-se o surgimento de novas ações.
O sistema de controle de constitucionalidade brasileiro, tributário, em seu primeiro momento, do sistema norte-americano, admite o controle chamado difuso, na via do recurso extraordinário.
Contrariamente, porém, ao sistema no qual se espelhou, o brasileiro não contava, desde 1988, com qualquer filtro de acesso, a semelhança do certiorari norte-americano.
Desse descuido com a funcionalidade da Corte resultou que toda e qualquer querela de somenos, entre partes individuais e com efeitos meramente patrimoniais, na qual se pudesse invocar uma remota raiz em matéria constitucional, podia ocupar a atenção do tribunal em igualdade de condições com as graves questões que dizem respeito ao equilíbrio federativo ou à governabilidade do país.
A Lei nº 11.418/2006 põe cobro a essa situação e devolve ao Supremo Tribunal Federal condições de funcionamento razoável.
Por isso, formalmente o Poder Judiciário Brasileiro manifesta seu reconhecimento pelo esforço de aperfeiçoamento institucional consubstanciado na aprovação dos três projetos de lei que darão uma nova feição ao serviço público que nos incumbe prestar.
Irão merecer a atenção da atual legislatura outras medidas propostas para complementar as iniciativas já adotadas. Dentre tantas, permito-me salientar a relevância da súmula impeditiva de recurso e a necessidade de valorização das defensorias públicas.
A criação de uma cultura de pacificação social mediante a adoção de medidas conciliatórias entre as partes, também constante da agenda da atual legislatura, já faz parte das prioridades do Conselho Nacional de Justiça.
Em dezembro último, após um criterioso trabalho de preparação, o Dia da Justiça ficou marcado como Dia Nacional da Conciliação.
Quase 84 mil audiências foram realizadas em todo o país e o índice de acordos alcançado superou os 55,36%3.
O Conselho implantou seu movimento pela Conciliação, como um programa permanente de estímulo à adoção desta fórmula de solução de pendências que, de outra maneira, poderiam resultar em penosas demandas judiciais.
Rotineiramente, alguns tribunais já definiram áreas preferenciais de conciliação, com resultados ainda mais promissores, como a marca de 90,91% de acordos celebrados no crédito imobiliário, atingida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, no Rio Grande do Sul.
Verificamos, com satisfação, que o interesse pelo tema não se restringe ao Poder Judiciário. A adesão de importantes setores do empresariado, por suas Federações4, com a criação de câmaras permanentes de conciliação, revela que esta forma alternativa de solução de conflitos vem sendo estimulada e tem seus méritos reconhecidos.
Ela é particularmente adequada às relações econômicas de caráter continuado, como são as que se estabelecem entre fornecedores de insumos e os grandes fabricantes, entre estes e sua rede de revendedores e com o grande número dos consumidores finais.
Outra área em que o Conselho adiantou medidas diz respeito à grande preocupação nacional com a segurança pública.
Após ouvir representantes da CPI do Tráfico de Armas5, o Conselho promoveu consultas e editou recomendação aos tribunais para a especialização de varas encarregadas de processar e julgar os delitos de alta complexidade perpetrados por grupos criminosos.
Inicialmente deu-se a transformação, pelo Conselho da Justiça Federal, das Varas Federais especializadas em lavagem de dinheiro em varas especializadas em crime organizado. Atualmente, já são dezoito.
E o Colégio Permanente de Presidentes de Tribunais de Justiça deliberou, no último dia 21 de janeiro, que a organização judiciária de todos os Estados brasileiros comportará idêntica especialização.
Ainda nessa seara, o Conselho tomou a iniciativa de propor aos tribunais de justiça a formação de um Banco de Dados da População Carcerária.
Sabe-se que parte da intranqüilidade nos presídios decorre da insatisfação de internos que vêem delongada a concessão de benefícios a que, por lei, fazem jus.
A estrutura deficiente das varas de execução penal, aliada à ausência de defensores públicos em número bastante, faz com que este fator se potencialize e estimula a adesão dos detentos a organizações que lhes possam oferecer alguma sensação de proteção. Isso os condena à reinserção no círculo vicioso do crime.
O banco de dados, de utilização interativa pelas autoridades carcerárias, juízes, promotores e defensores, refletirá imediatamente qualquer alteração digna de registro, como os dias de remissão de pena, e proporcionará a pronta verificação dos requisitos necessários para atendimento dos pedidos encaminhados.
Ele também permitirá a rápida definição nos casos de homonímia, responsáveis pelos episódios lamentáveis de prisões indevidas.
Essas são as providências que competem à Justiça Criminal. Esse banco de dados, formatado sobre experiências já desenvolvidas no seio do Poder Judiciário6, estará implantado no dia 2 de março, e retratará a situação de cerca de 50% da população carcerária nacional, concentrada nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
Indo mais além do seu âmbito próprio de atuação, é intenção do Conselho buscar a participação de outras entidades para promover a efetiva ressocialização dos apenados. Isso poderá ser feito, mediante capacitação profissional eficiente e direcionada para nichos específicos do mercado de trabalho. E, também, pela adoção de ação afirmativa que garanta aos egressos a admissão em empregos formalizados que lhes assegurem uma real possibilidade de refazerem suas vidas e contribuírem positivamente para a sociedade.
O Conselho tem objetivado valorizar as soluções e iniciativas desenvolvidas no seio do próprio poder judiciário em suas diversas instâncias, trabalhando na divulgação de práticas eficientes para solução de problemas que são recorrentes. As associações de classe da magistratura, as entidades acadêmicas e governamentais, de modo particular o Ministério da Justiça, por sua Secretaria Especial, têm sido parceiras constantes na busca de soluções.
Convencemo-nos, ao longo deste lapso de tempo, desde a instalação do Conselho Nacional de Justiça que, mais que uma reforma – conceito sempre associado à instantaneidade de resultados – o que nos incumbe conduzir é, na verdade, um movimento permanente de aperfeiçoamento. Aperfeiçoamento institucional e funcional do Poder Judiciário, em caráter continuado.
Mas, como a noção ampla de Justiça extravasa os limites de atuação do Poder Judiciário, sempre que necessário solicitaremos a atenção deste Parlamento e da sociedade como um todo, na busca de resultados que tornem a paz social uma realidade.
Com efeito, Senhor Presidente, o momento de apresentação desta mensagem sobre o estado do Poder Judiciário brasileiro vai muito além do cumprimento de formalidades. Ele sinaliza claramente a necessidade de participação coordenada dos poderes de Estado e da sociedade na construção de uma democracia que todos desejamos mais forte e de uma sociedade que todos almejamos mais justa.