Guerras, crimes e as complexidades de grandes províncias no final do século XIX marcaram a criação de alguns dos primeiros Tribunais de Relação no país. Vencedora do Prêmio CNJ da Memória do Poder Judiciário 2024, na categoria Patrimônio Cultural Museológico, a Exposição Virtual – 150 Anos: 7 Tribunais” resgata o momento de abertura de sete novas cortes no Brasil Imperial. A documentação reunida em extensas pesquisas trouxe nova perspectiva sobre a trajetória desses tribunais e o papel que cada um desempenhou após sua constituição na história do Judiciário Brasileiro.
O Decreto 2.342 de 1873 foi o ponto de partida para o levantamento que compôs a exposição. O normativo determinou a formação de sete tribunais que se tornaram os Tribunais de Justiça de São Paulo, Rio Grande do Sul, Ceará, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e Pará. O esforço para recontar a história desses órgãos em seus sesquicentenários foi fruto do levantamento de informações históricas e um trabalho interdisciplinar que reuniu equipes das sete cortes envolvidas sob a coordenação do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
De acordo com o coordenador do Museu do TJSP, desembargador Octavio Augusto Machado de Barros Filho, a partir dos critérios estabelecidos, cada tribunal seguiu um roteiro de forma a padronizar informações, contudo sem excluir a individualidade e particularidade de cada um. “Cada tribunal colaborou com a criação da logomarca, contextualização histórica com imagens respectivas, primeiras sedes e primeira composição, primeiros processos e processos históricos, bibliografia do conteúdo apresentado. Além disso, as cortes envolvidas forneceram também os contextos histórico nacional e institucional para a realização da mostra virtual”, pontuou.
O desembargador Barros Filho lembrou que a exposição buscou destacar, de forma fluida e harmônica, as singularidades de cada instituição, tanto dos tribunais como do período histórico de cada estado e do país. “As informações coletadas foram essenciais para preservar a unidade e contextualizar o sesquicentenário em uma linha do tempo, possibilitando a transmissão de seu valor cultural, social e histórico”, explicou.
As pesquisas feitas por cada um dos tribunais permitiram a recuperação de personagens importantes para a história do Judiciário e do país, como a trajetórias da primeira juíza do Brasil, nomeada em 1939 pelo TJCE, desembargadora Auri Costa Moura, e da primeira mulher a presidir a mesma corte 60 anos depois, desembargadora Águeda Passos Rodrigues Martins (1999-2000).
Para o coordenador do Museu do TJSP, o objetivo da mostra é disponibilizar ao público um material robusto de pesquisa, “tanto para o pesquisador como ao público em geral que queira conhecer um pouco da história do nosso Judiciário”. O desembargador destacou que o principal desafio para a construção da exposição foi a quebra de paradigma que era a realização de projetos de forma individualizada, e, nesse caso, reunir todos esses tribunais em um mesmo projeto, definir critérios e processo criativo sem qualquer tipo de hierarquia entre os tribunais participantes.
Pertencimento
Toda pesquisa histórica para reunir os dados que iriam compor a exposição, que incluiu análise de casos julgados nos primeiros processos,
permitiu um novo olhar sobre a história de cortes como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Integrante do Memorial do TJRS, a historiadora Carine Trindade afirmou que a documentação histórica propiciou uma nova orientação no tempo e na avaliação de acontecimentos do conhecimento popular, que pouco foram relacionados à história do Tribunal de Justiça.
Nesse sentindo, Carine ressaltou que houve dois casos emblemáticos, de repercussão nacional, e que ainda estão muito presentes no imaginário social. O primeiro deles, “O crime da rua do Arvoredo” traz o caso de José Ramos, que matou pessoas com objetivos obscuros. “Ele ficou conhecido como o primeiro psicopata brasileiro. Há o mito de que José Ramos fazia linguiça com os corpos das vítimas, o que não se sustenta nos processos judiciais localizados tanto no Arquivo Histórico do RS como no Arquivo Nacional. Este caso aconteceu em 1864, quando o Tribunal da Relação do Rio Grande do Sul ainda não havia sido instalado. Por esse motivo, o processo foi julgado pelo Tribunal do Rio de Janeiro”, disse.
O segundo caso historicamente significativo, segundo Carine, diz respeito à Revolta dos Muckers, que traz um conflito bélico entre o Estado e um grupo de pessoas organizadas como se fosse uma seita. O caso teve participação do Tribunal de Relação de Porto Alegre, já que o conflito ocorreu exatamente no ano de instalação do órgão. “Ampliando a análise do crime da Rua do Arvoredo e do caso dos Muckers para tantos outros que passaram pelo Tribunal da Relação do RS, é possível afirmar que a criação de um tribunal na capital do Rio Grande do Sul representou um olhar mais apurado do Império a um território fronteiriço, marcado por violência, e que se ressentia da ausência do Imperador”, avaliou.
Carine defendeu ainda que a instalação de um Tribunal no Rio Grande do Sul representou grandes avanços, uma vez que o estado passou a contar uma estrutura organizada de Justiça e mais ágil, já que os recursos passaram a ser julgados no próprio território. “Isso representou um passo a mais para o fortalecimento do sentimento de pertencimento do Brasil”, completou.
Tesouros históricos
Por seu caráter virtual e amplo, a exposição também possibilitou novo contato de historiadores ligados aos centros de memória dos tribunais com acervo documental das cortes. É o caso do Tribunal de Justiça do Ceará, que foi atingido por um incêndio em setembro de 2021. Historiador responsável por resgatar as informações que fariam parte da exposição, João Franklin, viu na iniciativa uma oportunidade para recuperar o acervo. “O que o levantamento documental nos proporcionou foi muita alegria em rever o acervo intacto, mesmo após o incêndio. A única diferença era a fuligem que o cobria. Guardadas as devidas proporções, foi como o reencontro de um parente querido, que estava muito longe, com sua saudosa família, ou seja, muito emocionante”, recordou.
A agenda pessoal do jurista Clóvis Beviláqua é um dos objetos de grande valor histórico encontrado a partir da pesquisa desenvolvida para a exposição. A empreitada reacendeu o sonho do Memorial do TJCE de ver acervos como o de Beviláqua inteiramente digitalizado, a exemplo do que vem sendo feito pela Biblioteca Nacional e pelo Arquivo Nacional. O jurista, membro da Academia Brasileira de Letras (1897), Clóvis Bevilaqua foi responsável por elaborar a primeira Constituição do Estado do Ceará e foi o principal autor do Código Civil Brasileiro, de 1916.
Oportunidade
A coordenadora administrativa do Tribunal de Justiça do Mato Grosso, Bruna Penachioni, acredita que a construção da Exposição Virtual 150 Anos: 7 Tribunais foi experiência enriquecedora para todos os integrantes dos centros de memória das cortes envolvidas. “Não resta dúvida que foi uma grande oportunidade de estudo e pesquisa históricos, de compartilhamento de conhecimento com os demais tribunais sesquicentenários e de celebração coletiva”, enfatizou.
No caso específico do Mato Grosso, a experiência social do pós-Guerra do Paraguai recepcionou a criação do Tribunal da Relação de Mato Grosso. “A Província de Mato Grosso foi invadida pelo Paraguai na guerra contra a Tríplice Aliança (1865-1870). Isso devastou a população de muitas cidades, incluindo a capital, com doenças. Também prejudicou a economia local e desorganizou a estrutura social”, explicou. De acordo com ela, havia a necessidade do governo central, por meio da estrutura de serviços judiciários, fixar sua presença administrativa na Província que havia sido invadida.
O pós-guerra permitiu a retomada das rotas comerciais com a Argentina, o Uruguai e o próprio litoral brasileiro, por meio do Rio Paraguai, impulsionando outro ciclo de desenvolvimento socioeconômico e de miscigenação. “Este cenário social foi apresentado na exposição pelo texto de apresentação. Além disso, os comportamentos sociais se modificaram pela esperança de se ver decidir e cumprir as decisões judiciais no próprio território mato-grossense, libertando-se dos serviços do Tribunal da Relação do Rio de Janeiro, sede do II Império”, complementou a coordenadora.
Desafio
Idealizador do projeto da exposição, o Tribunal de Justiça do Pará vem empreendendo esforços para preservar documentos, objetos e todo patrimônio cultural daquela corte. A exposição surgiu do desejo de um grupo de servidores integrantes da Comissão de Gestão da Memória do TJPA que receberam o desafio de localizar e estruturar informações sobre a história do tribunal. A busca não se encerrou com a exposição, os documentos ou obras que continuam sendo pesquisados deverão garantir atualizações à mostra que traz entre seus achados o primeiro auto de liberdade de pessoas escravizadas da região. Os documentos pesquisados estão sob a guarda do Centro de Memória da Amazônia que é a instituição ligada à Universidade Federal do Pará.
A bibliotecária e integrantes de Comissão de Gestão da Memória, Leiliane Rabelo, salientou que a história do Tribunal de Relação se confunde com o crescimento da cidade de Belém e com a efervescência provocada pela economia gomífera, de extração de látex. “As transformações trazidas pelo ciclo da borracha traziam inovações como embarcações a vapor que facilitava o escoamento da produção agrícola. Foi nesse contexto político e histórico surgiu o Tribunal do Pará”, disse.
Todas as mudanças no cenário urbano e cultural de Belém, que incluíam a inauguração de teatros, hotéis e cafés no auge da Belle Époque, representaram consolidação da região e tornaram desnecessária a subordinação do Pará à Justiça do Maranhão criado em 1813. O primeiro processo do Tribunal da Relação relatava a contestação judicial de um grupo de pessoas afrodescendentes escravizadas cuja propriedade era alegada por Francisco Ferreira da Silva Viana. No auto, o grupo questionava a ausência de documentos que provassem o vínculo com Vianna. “Essas pessoas reivindicavam a sua liberdade, o auto nos ajudou a compreender um pouco mais sobre como o Judiciário paraense atuava diante dessa realidade”, finalizou Leiliane.
Texto: Ana Moura
Edição: Lenir Camimura
Agência CNJ de Notícias