A judicialização da saúde é uma situação que envolve os três entes federativos (União, estados e municípios) e afeta diretamente a qualidade de vida da população. A importância do tema se demonstra em números no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), que atua na região Sul do país. Em 2020, foram julgados, em primeiro e segundo graus, 13.976 processos envolvendo fornecimento de medicamentos.
Desses, 3.759 foram recursos, sendo 3.004 sobre medicamentos em geral, 513 sobre produtos oncológicos, 104 que tratam de terapias que possuem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 41 de medicamentos não padronizados (que não estão previstos para dispensação pelo Sistema Único de Saúde – SUS), 39 são processos referentes a fármacos padronizados (que constam na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – Rename), 15 sobre remédios sem registro na Anvisa e 43 processos cujo assunto principal não é o fornecimento de medicamentos, mas que contemplam o tema.
Em primeiro grau, foram 10.217 julgamentos, sendo o maior número, 3.754, pelos Juizados Especiais Federais (1.958 em Santa Catarina, 1232 no Paraná e 564 no Rio Grande do Sul). Em trâmite, houve, em 2020, 12.346 processos em primeiro grau e 3.027 em segundo grau.
Na entrevista a seguir, o doutor honoris causa em Saúde pela Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (ES), desembargador federal João Pedro Gebran Neto, explica mais sobre o tema.
Em 2020, houve 12.346 processos em trâmite no primeiro grau com o assunto principal “fornecimento de medicação”. O que isso representa?
Gebran Neto: o que parece merecer explicação, em primeiro lugar, é o elevado número de processos sobre o tema em tramitação perante a Justiça Federal. E, segundo a linha jurisprudencial dos Tribunais Superiores, tudo indica que essa quantidade deve aumentar bastante nos próximos anos, dada a indispensabilidade de inclusão da União nas lides que envolvam medicamentos que não possuem registro na Anvisa, bem como o redirecionamento das ações ao ente competente administrativamente a suportar o ônus financeiro, nos termos do Tema 793 do STF.
Em segundo lugar, há crescente judicialização sobre produtos não registrados na Anvisa, o que está a exigir do Poder Judiciário um rígido escrutínio sobre a deferência ou não das deliberações daquela agência reguladora. Não se pode ignorar que ela é dotada de elevada expertise e respeito internacional, tendo sido recentemente credenciada internacionalmente para realizar inspeção farmacêutica.
Terceiro, os processos de registro junto à Anvisa precisam ser conhecidos pelo Poder Judiciário para se possibilitar conclusões sobre eventuais demoras ou erros na aprovação ou rejeição por parte da agência. É necessário salientar que o procedimento para registro só é instaurado após a indústria farmacêutica promover a solicitação. Assim, muitas vezes não há registro porque sequer foi realizado um pedido. E essa falha não pode ser imputada à Anvisa. Outra falha que não pode ser atribuída à agência é quando ocorre a demora do seu processamento do pedido em face da falha ou falta de informações por parte da empresa solicitante. Enfim, são muitos os cenários que podem ou não justificar a concessão de medicamentos quando estes não têm registros. De qualquer forma, é imprescindível fazer um exame acurado da questão administrativa.
E o registro do medicamento é apenas uma etapa (indispensável) para que esse possa vir a ser incorporado na política pública de saúde. Depois, ele deve ser aprovado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), incorporado pelo Ministério da Saúde, e pactuado seu financiamento dentro do SUS.
Enfim, os números relevam dados da crescente judicialização, mas apenas sinalizam a ponta do iceberg. O essencial, a meu juízo, seria o aprimoramento na prestação dos serviços já incorporados na política pública de saúde do SUS, de modo a conferir maior credibilidade e suporte social ao sistema. Uma boa, adequada e tempestiva política de atenção primária e secundária poderia dar a robustez necessária para reverter a curva da judicialização, que hoje tem por foco exclusivamente na assistência farmacêutica, mas certamente se voltará para as falhas assistenciais.
Em segundo grau, o número total de processos em trâmite é de 3.027, sendo que 484 deles são sobre medicamentos oncológicos. Qual a sua análise?
Gebran Neto: os medicamentos oncológicos representam outro grande desafio para o SUS e para o Poder Judiciário, vez que possuem uma política administrativa absolutamente divergente do restante dos remédios. Aliás, em oncologia, não se deve pensar apenas em remédio, mas em tratamento como um todo, que inclui o medicamento, mas também os demais cuidados que o paciente está a merecer.
Esse é o motivo pelo qual o seu financiamento pelo SUS é por meio de Autorização de Procedimento de Alta Complexidade (Apac), cabendo ao hospital credenciado (seja por Unidades de Assistência de Alta Complexidade – Unacon – ou pelos Centros de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia – Cacon) prescrever o medicamento, adquirir e ministrá-lo no paciente. Seu o custeio será feito pelo valor e dentro dos limites das Apacs.
E, deste sistema, novas complexidades surgem, porque nem sempre o valor da Apac é suficiente para custear determinados tratamentos. Isso vem gerando judicialização, porque a unidade de saúde prescreve, mas alega não ter recursos suficientes para custear os medicamentos mais caros, vez que o valor deste excede o limite da Apac. Penso que, para além da judicialização, este tema somente se solverá mediante um amplo pacto dos entes que compõem o SUS e suas unidades credenciadas para tratamentos oncológicos.
Ao lado dessa questão funcional, há que se considerar que, muitas vezes, o medicamento está aprovado na Anvisa, mas nem sempre está incorporado em algum programa de custeio de medicamentos oncológicos do Ministério da Saúde. Assim, ele está disponível para aquisição no mercado, por particulares, mas não está inserido na política pública, ou seu custeio não é possível em face do valor da Apac. E isso se torna num grande dilema a ser decidido pelo médico e pelo Poder Judiciário.
Levando-se em conta esses dados, como equacionar a relação indivíduo-sociedade na questão do fornecimento de medicamentos?
Gebran Neto: essa equação não é de fácil solução. Os problemas que vivenciamos no Brasil não são diferentes dos experimentados por outros países que possuem um sistema público de saúde, como o Canadá e o Reino Unido, por exemplo. Todavia, aqui temos outras dificuldades que acarretam baixa adesão social e política ao SUS, diversamente do que ocorre com os programas de saúde desses outros países. O National Institute for Health and Care (Nice), do Reino Unido, por exemplo, é uma das mais respeitadas instituições inglesas e suas soluções são dotadas de alta respeitabilidade e aceitação. Mas isso está umbilicalmente vinculado ao fato de que os seus serviços essenciais são prestados em tempo e modos adequados. Acredito que um dos problemas do SUS é falta de conhecimento de seu trabalho e falhas prestacionais. Isso leva à baixa adesão política e social, bem como à baixa deferência às suas diretrizes, diversamente do que ocorre com o Nice.
Por isso, para equacionar o dilema em relação aos interesses individuais e sociais, há que se ter um bom serviço básico de saúde (atenção primária e secundária) prestado pelo SUS, ampla adesão e reconhecimento social da excelência de seu trabalho, conhecimento das linhas de atuação do SUS e uma política de atenção para os casos excepcionais.
Acredito que o SUS seja uma das mais importantes conquistas da Constituição Federal de 1988 e muito foi feito de lá para cá, mas ainda há muito que se fazer para que possa ser a instituição que foi sonhada pelo constituinte.
Fonte: TRF4