Quando o Judiciário usa afeto para tentar pacificar partes
29/07/2011 – Um momento delicado em toda família se dá quando ocorre separação entre cônjuges e torna-se inevitável a discussão sobre guardas de filhos, pensão alimentícia, reconhecimento de paternidade e demais mazelas que mexem com o afeto e os sentimentos mais íntimos de cada um. Foi pensando nas peculiaridades envolvidas no Direito de Família que o Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) criou, sete anos atrás, trabalho até hoje inédito no país, voltado para a conciliação de processos nessa área.
As ações são centradas na atuação de equipe multidisciplinar formada por advogados, psicólogos e assistentes sociais que atendem as famílias desde a fase pré-processual, passando pelo atendimento psicossocial e, inclusive, acompanhamento após a conciliação – com o envio, quando necessário, dessas pessoas para entidades sociais.
O trabalho, que percorre um ciclo completo, faz parte do Núcleo de Conciliação das Varas de Família (NCVF), do TJAM, que comemora excelentes êxitos no total de audiências e acordos já realizados. Para se ter uma idéia, no período entre novembro de 2009 e março deste ano já foram contabilizadas 45.389 audiências pautadas e 27.965 audiências realizadas. Tanto que o núcleo consegue, até mesmo, ter um número de acordos homologados maior que o percentual médio obtido em todos os tribunais do país: ao longo desse mesmo período, foram homologados 25.236 acordos.
Integração– Isso tudo porque o núcleo de conciliação das varas de família trabalha de forma integrada com a comunidade, por meio do apoio de órgãos governamentais, governantes, igrejas, Ministério Público, defensoria pública, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e universidades diversas. “Trata-se de uma proposta concreta de proporcionar Justiça mais rápida e eficiente, de baixo ou nenhum custo para os jurisdicionados economicamente carentes, numa abordagem multiprofissional e interdisciplinar e por intermédio de profissionais e acadêmicos de direito, psicologia e serviço social”, explicou o juiz Gildo Alves de Carvalho, coordenador do núcleo.
Segundo ele, um dos motivos do bom êxito da experiência é o fato do grupo ser profundamente identificado com os anseios e as necessidades da população carente de Manaus, além de interessado em prestar um serviço “capaz de mitigar os problemas ligados ao direito de família, levando em consideração os fundamentos do Estado Democrático de Direito, sobretudo a garantia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais”.
“Nossa equipe trabalha como facilitadora, procurando recuperar a cidadania, a auto estima e o restabelecimento do canal de comunicação das pessoas. Para que elas tomem consciência e assumam com responsabilidade a condução de suas vidas, na busca de seus direitos. Não porque são pobres, mas porque têm direitos como qualquer um”, acentuou. Foi o trabalho desenvolvido pelo núcleo que ajudou a doméstica Conceição Silva a ter melhor rendimento e voltar a reunir a família.
Conceição contou que desde que se separou do marido, em 2005, não tinha contato com ele, em função das várias brigas ocorridas durante o período de final do relacionamento. Quando procurou o núcleo, estava desempregada e resolveu pedir pensão para os três filhos. “As audiências e as conversas que tivemos com as doutoras (psicólogas e assistentes sociais) nos levaram a falar bastante sobre tudo o que aconteceu e os problemas que eu enfrentava terminaram. Voltei a falar com meu ex-companheiro, que hoje dá todos os meses uma ajuda para os meninos. As moças do núcleo ainda me ajudaram a arranjar um emprego e noto que até meus filhos estão mais alegres, pelo fato de terem voltado a ver e a conversar com o pai”, afirmou.
Peculiaridades – O núcleo foi criado por meio de resolução do TJAM em julho de 2004. Conta com a participação permanente de uma equipe de advogados, assistentes sociais e psicólogos. Tem, como ponto de partida, a realidade de pessoas que procuram o serviço, considerando que as peculiaridades que abrangem as demandas familiares exigem destes profissionais sensibilidade e atuação diferenciada para as questões que se apresentam.
Por conta disso, conforme informações da administração do tribunal, tem interferido de forma positiva nas dinâmicas familiares e no reconhecimento dos papéis e funções dos seus membros, contribuindo de forma decisiva na reconstrução dos indivíduos, levando-os à afirmação e consolidação dos seus direitos sociais e humanos.
Na prática, além do trabalho da equipe junto às partes ao longo da conciliação, também é feita avaliação dos impactos pós-acordos, em projeto social de difusão do Estatuto da Criança e Adolescente, pesquisa de opinião de atendimento, monitoramento mensal dos resultados dos conciliadores referente às audiências realizadas e, ainda, em curso de capacitação semestral aos estagiários, conciliadores, profissionais diversos e voluntários – em abordagem interdisciplinar de conflitos de família.
Tais profissionais, também fazem visitas domiciliares e sindicâncias às partes envolvidas nos processos, bem como atendimento psicossocial, avaliação psicossocial (neste caso, para subsidiar posterior decisão judicial). Para se ter uma idéia da importância desse trabalho, no período de janeiro de 2010 até março deste ano foram realizadas 1.560 visitas domiciliares, 755 atendimentos psicossociais, 602 avaliações psicossociais, 85 acordos no atendimento psicosocial e 1.067 participações em audiências somente por parte dos psicólogos.
Cidadania – Já os assistentes sociais fazem pré-atendimento, visitas domiciliares, levantamento socioeconômico das famílias, entrevistas técnicas, encaminhamento das partes para redes de apoio social, mediação familiar e orientações sobre o exercício da cidadania destas pessoas. São responsáveis, também, pela elaboração de relatório técnico social das conciliações realizadas.
“A psicologia, nestes casos, atua considerando que muitas pessoas são levadas ao Judiciário acompanhadas de processos emocionais que dificultam a aplicação objetiva da lei. Desta forma, entende-se que muitas vezes os litígios não se resolvem em virtude de processos emocionais que os acompanham. Por isso, o setor, apoiado no tripé direito-psicologia-serviço social, busca investir em intervenções de que objetivam a transformação da lide sociológica que se apresenta, atrelada à demanda jurídica”, afirmou o magistrado.
“A experiência é muito rica. Juntamos os nossos olhares sobre as várias demandas, procuramos dar um acolhimento emocional e ajudamos a identificar os fatores que estão em divergência. Dessa forma, vivemos aqui a prática diária de que o trabalho disciplinar dá bastante certo na conciliação”, completou a psicóloga Fernanda do Valle Pereira Formiga, que há dois anos atua no núcleo.
Cabe aos psicólogos que integram a equipe procurar avaliar os motivos que levam os sujeitos a requerer uma ação judicial, tais como conceitos que tanto os requerentes como os requeridos possuem sobre a Justiça, expectativas dos interessados no que se refere ao processo judicial, motivos que levaram a mãe a pedir o reconhecimento de paternidade, concepções sobre família, casamento, maternidade e paternidade e modos como as crianças expressam seus sentimentos frente ao processo judicial
“Estabelecemos como objetivo específico a transformação dos conflitos nas ações de divórcio consensual e litigioso, ações de alimentos, alimentos gravídicos, guarda entre pais, regulamentação do direito de visita, companhia e convivência, oferta de alimentos, reconhecimento e dissolução de união estável e investigação de paternidade”, acentuou o coordenador.
Para o juiz Gildo Carvalho Filho os conflitos de família, antes de serem jurídicos, são “relacionais”, o que sugere uma forma especial de abordagem. Segundo ele, em muitos casos, o processo ao tratar exclusivamente daqueles interesses juridicamente tutelados exclui aspectos que são tão importantes ou até mais relevantes do que aqueles juridicamente protegidos.
“A nova ordem social vem impondo uma mudança de pensamento e postura no mundo jurídico, sobretudo, no direito de família. Neste campo, a mediação se mostra adequada por uma característica fundamental. E o núcleo de conciliação das varas de família da comarca de Manaus utiliza tais ferramentas para alcançar uma conciliação qualificada, enfrentando o conflito de família pelo prisma sistêmico, não permitindo a exclusão de nenhum de seus membros nem, tampouco, permitindo que as angústias da vida sejam acumuladas em pilhas de papéis”, destacou.
Aprovação – Os resultados também possuem confirmação estatística. Conforme pesquisa realizada, 100% das famílias atendidas consideram que a conciliação trouxe diversos benefícios para os filhos. Outras 80% disseram que os acordos formalizados estão sendo cumpridos e 70% destacaram que após a conciliação passaram a ter melhor capacidade de resolver os conflitos com a parte.
“Os problemas de família que são resolvidos na Justiça são bastante delicados e, por isso, muitas vezes não podem ficar presos apenas à questão jurídica. Por isso é importante essa atuação de diversos profissionais na conciliação destes processos”, ressaltou o economista Caelison Lima de Andrade, analista judiciário do TJAM e um dos servidores do núcleo. Andrade ajuda na preparação e realização de 42 audiências por dia e em pelo menos duas delas atua como conciliador.
Também 29% dos entrevistados, de acordo com a pesquisa, disseram ter tido melhores condições para o desempenho de suas condições como pais e mães. E 99% dos entrevistados deixou claro que a justiça atendeu às suas expectativas. Um sonho realizado pelos jurisdicionados e, também, pelos servidores e representantes do Judiciário. Tudo isso, com muito afeto, como assegurou a equipe.
Resolução do CNJ – Desde novembro passado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou, por meio da resolução Nº 125, que institui a Política Nacional de Conciliação no Judiciário brasileiro, que todos os tribunais do país passem a ter núcleos permanentes de conciliação e centros judiciários de conciliação voltados para o atendimento a juizados e varas das áreas cível, fazendária, previdenciária e de família. Um trabalho que já está sendo instalado nestes tribunais e que possui um estilo semelhante ao do núcleo do Tribunal do Amazonas.
Na prática, a resolução institui a Política Nacional de Conciliação e tem o objetivo de estimular e assegurar a solução de conflitos por meio do consenso entre as partes. De acordo com a coordenadoria do movimento pela conciliação do CNJ, a Política Nacional de Conciliação objetiva a boa qualidade dos serviços jurisdicionais e a intensificação, no âmbito do Judiciário, da cultura de pacificação social. Nesse sentido, serão observadas a centralização das estruturas judiciárias, a adequada formação e treinamento de servidores, conciliadores e mediadores para esse fim, assim como o acompanhamento estatístico específico.
Cabe ao Conselho, nesta etapa de implantação da política nacional, auxiliar os tribunais na organização dos trabalhos e firmar parcerias com entidades públicas e privadas para ações que venham a auxiliar a conciliação de processos. O que permitirá o estabelecimento de diretrizes para implantação de políticas públicas que tracem caminhos para um tratamento adequado de conflitos. E, também, o desenvolvimento de conteúdo programático e ações voltadas para a capacitação, em métodos consensuais, de solução de conflitos por parte dos servidores, mediadores e conciliadores.
Hylda Cavalcanti
Agência CNJ de Notícias