No Piauí, o aplicativo chamado Salve Maria, que facilita a denúncia de casos de violência contra a mulher, já foi baixado mais de 6 mil vezes e está em tratativas para expansão para o Acre e Maranhão. No Mato Grosso, o Tribunal de Justiça criou indicativos que classificam por cores o andamento processual, o que evita a prescrição de processos de violência doméstica e acelera os julgamentos de feminicídios. E, no Paraná, juízes de varas de violência doméstica traduziram a Lei Maria da Penha para duas línguas indígenas faladas na comarca de Laranjeiras do Sul.
As iniciativas foram apresentadas durante a XII Jornada Maria da Penha, promovida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), finalizado na última sexta-feira (10/8). Nos dois dias do evento, em Brasília/DF, foram debatidos os protocolos estabelecidos nas Diretrizes Nacionais para Investigar, processar e Julgar os casos de Feminicídio, estabelecidas pelas Nações Unidas (ONU Mulheres).
O feminicídio, modalidade de homicídio qualificado incluída no Código Penal em 2015, é um crime de gênero cometido contra mulheres quando há violência doméstica e familiar, e menosprezo ou discriminação à condição da mulher. De acordo com dados divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública na semana passado, 1.133 foram vítimas de feminicídio em 2017. No mesmo ano, houve 221.238 registros de violência doméstica, o que significa 606 casos por dia, 25 por hora, um a cada dois minutos.
Silêncio que mata
O aplicativo Salve Maria está em funcionamento desde 2016 no Estado do Piauí, que há três anos foi palco de um feminicídio que chocou o país: o estupro coletivo de quatro adolescentes, culminando com a morte de uma delas, após ser atirada de um penhasco em Castelo do Piauí. “Ninguém dava visibilidade ao assassinato das mulheres” diz a delegada de polícia do Piauí, Eugênia Monteiro, idealizadora do aplicativo. Por meio de um botão do pânico acionado pela mulher em perigo, o Salve Maria emite um ponto de localização da ocorrência para a viatura mais próxima. Também é possível denunciar, de forma sigilosa, uma agressão presenciada. No último ano, o aplicativo foi acionado 192 vezes, sendo 143 ocorrências em Teresina. Para a delegada Eugênia, é fundamental utilizar a tecnologia para prevenir novos casos de feminicídio, já que, em 2015, dados do estado do Piauí mostravam que 80% das mulheres assassinadas por esse crime nunca haviam registrado queixa em delegacias. “O silêncio está matando essas mulheres”, diz.
Julgamento e proteção
De acordo com dados do CNJ, apresentados na pesquisa “O poder Judiciário na aplicação da lei Maria da Penha”, em 2017 ingressaram nos tribunais de justiça estaduais do país 452,9 mil casos novos criminais envolvendo violência doméstica contra a mulher, número 12% maior do que em 2016.
No Tribunal de Justiça do Mato Grosso, foram 17 mil casos novos no ano passado. Para enfrentar essa realidade, a Corregedoria-Geral da Justiça de Mato Grosso criou, em julho, dois novos indicadores para monitorar processos relacionados à violência doméstica e feminicídio nas 79 comarcas do Estado, com o objetivo de que tenham uma resposta mais rápida e eficiente do Poder Judiciário.
Como os processos de violência doméstica costumam apresentar penas menores, eles prescrevem rapidamente, isto é, ocorre a perda do direito de punir pelo transcurso do tempo. Isso significa que, muitas vezes, o Estado deixa de punir aqueles que cometeram crimes contra a mulher por conta da morosidade processual.
Os auditores do TJMT acompanham diariamente os números e cores dos painéis e enviam notificações para as unidades judiciárias. Quando o processo atinge mais de cem dias sem andamento, a auditoria estabelece um prazo para que o juiz responsável tome as providências. “Se, ainda assim, o processo não andar, a Corregedoria entra em ação”, diz a desembargadora do TJMT Maria Erotides Kneip Baranjak, responsável pela Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cemulher).
A medida contribui para o cumprimento das metas estabelecidas pelo CNJ, especialmente a Meta 8: “Fortalecer a rede de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres”.
Outra iniciativa do tribunal foi a implantação do Processo Judicial Eletrônico (PJe), em agosto, nas duas Varas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Cuiabá, o que tem conferido mais celeridade no julgamento e na concessão de medidas protetivas a mulheres ameaçadas.
O PJ-e é um sistema desenvolvido pelo CNJ em 2011, em parceria com os tribunais, para a automação do Poder Judiciário – a adesão ao sistema é gratuita. Antes da implantação do PJ-e nas varas de violência doméstica de Cuiabá, o pedido de medida protetiva saía da delegacia, passava pela distribuição no fórum, chegava à Vara e depois de analisado era remetido à delegacia novamente. Agora, a petição é encaminhada instantaneamente da delegacia para o juiz decidir.
Conheça como funciona o projeto do TJ-MT no vídeo abaixo:
A dificuldade de classificação
“Nós não temos processos no fórum, mas os cadáveres se apresentam”, afirmou a desembargadora Lenice Bodstein, do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ-PR). A frase da desembargadora se refere à dificuldade, tanto nas delegacias quanto dentro do próprio Poder Judiciário, de classificar os crimes como feminicídio, tendo em vista que a lei que o estabeleceu tem apenas três anos. Até então, o crime era tratado apenas como homicídio de maneira geral.
A desembargadora conta que tem feito um trabalho de capacitação com os próprios escrivães de justiça para que possam identificar quando se trata de um processo envolvendo a questão do gênero.
Em levantamento feito este ano pelo TJ-PR, apresentado durante a Jornada Maria da Penha pela desembargadora Lenice Bodstein, foram identificadas 324 ações penais de feminicídio. A cidade de Londrina e a capital Curitiba apresentavam mais de 20 ações, enquanto 61 juízos não apresentavam nenhum caso. Na opinião da juíza auxiliar da Presidência do CNJ Andremara dos Santos, o Judiciário e o CNJ têm se esforçado para coletar dados fidedignos e retirar da invisibilidade o que antes era tolerado. “O Judiciário aprimorou e refinou mecanismos de coleta de dados e procurou-se adequar a perspectiva de gênero”, diz a juíza auxiliar.
Outra iniciativa do TJPR apresentada pela desembargadora Bodstein é a tradução, para línguas indígenas de povos de Laranjeiras do Sul, da Lei Maria da Penha. “A tradução será muito importante para que mulheres dos povos Kaingang e Guarani possam conhecer os seus direitos”, diz a desembargadora.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias