Manual para depoimento de crianças amplia proteção de indígenas no MS

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Foto: G. Dettmar/CNJ
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Mesmo em localidades onde o depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas de violência já considera aspectos culturais das comunidades indígenas, o aperfeiçoamento contínuo dos procedimentos de realização dessa escuta se mostra necessário. A realização do projeto-piloto em Mato Grosso do Sul para desenvolvimento do “Manual Prático para Depoimento Especial de Crianças e Adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais”, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) com apoio do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), revelou oportunidades para aprofundar o diálogo com povos indígenas e assegurar o direito dessas crianças de serem ouvidas em todo processo judicial que as afete com o mínimo de interferência em suas vidas privadas.

Juízes e juízas de três comarcas do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul (TJMS) participaram do diagnóstico antropológico de comunidades tradicionais, que resultou na formatação do manual. Em Dourados, Amambai e Novo Mundo, o depoimento especial já estava estruturado, tendo atendido inclusive crianças indígenas. A experiência mostrou que, além de um Judiciário capacitado para atuar por meio de entrevistadores forenses e da disponibilidade de intérpretes que possam mediar a comunicação, é necessário, sobretudo, conhecer a cultura e também os direitos próprios assegurados a esses povos.

Por isso, o TJMS realizou, em parceria com o CNJ, um webinário com cinco ciclos de debates sobre o tema. Além do projeto-piloto que embasou o manual prático, também foram discutidos os sistemas tradicionais de resolução de conflitos de povos indígenas no Brasil e sua articulação com o Judiciário; a relação entre a Lei da Escuta Protegida e a legislação indigenista; o protocolo brasileiro de entrevista forense; e a contribuição da perícia antropológica para a efetivação dos direitos à proteção integral e não revitimização das crianças.

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Para a juíza auxiliar da Presidência do CNJ que atuou na coordenação dos trabalhos, Lívia Peres, o diálogo permite que as dificuldades possam ser sanadas, garantindo o cuidado adequado a esse público. “O diálogo interinstitucional é fundamental para que o sistema de garantia realmente seja efetivado, assim como o diálogo intercultural, para se chegar ao melhor formato de se colher o depoimento e assegurar os direitos das crianças e dos adolescentes.”

A consultora do Pnud e antropóloga responsável pelo diagnóstico e pelo manual prático, Luciana Ouriques, ressalta que o protocolo traz um conjunto de diretrizes para que os tribunais possam implantar a política judiciária com a participação ativa dessas comunidades. “A articulação entre o Sistema de Justiça e os povos é fundamental para orientar o Judiciário sobre o modo adequado de ouvir essas crianças, para que a proteção realmente ocorra. Por isso, é importante que as comunidades conheçam e saibam como funciona o manual.”

Indígenas

Em Dourados, onde duas comunidades indígenas estão mais próximas à cidade – Jaguapirú e Borobó -, além da dificuldade comum para conseguir intérpretes que deem conta das diferenças nos dialetos guarani-kaiowá, uma questão cultural importante foi identificada nos laudos antropológicos: a concepção de que as meninas a partir de 12 anos estão aptas a constituírem família. “Em muitos casos, as crianças vão morar com homens com o consentimento das famílias”, conta o juiz da 2ª Vara de Famílias e Sucessões de Dourados Eduardo Floriano de Almeida. Nas acusações de violência sexual, a técnica do depoimento especial é utilizada e o relato se torna mais produtivo. A presença do intérprete facilita, inclusive, na oitiva dos acusados.

Não há, segundo o juiz, dificuldades para entrar em contato com as lideranças das comunidades, mas falta estrutura. “Não precisamos de autorização para entrar e eles querem mais presença do Estado. Aceitam a intervenção da Justiça e pedem por mais segurança. Mas há uma rivalidade tribal entre eles”, explicou. A comunidade jaguapirú tem nove mil habitantes e permite a mistura com brancos e migrantes, como os venezuelanos e haitianos. Já o povo Bororó, com 12 mil pessoas, é mais fechada e acredita que há um favoritismo em relação ao outro grupo de indígenas, porque eles têm acesso à estrada e ficam logo na entrada do bairro.

Para Eduardo Floriano de Almeida, é preciso ter uma articulação com toda a rede de proteção e o sistema de garantias. Os outros agentes, como as polícias, o Ministério Público e assistentes sociais, por exemplo, precisam conhecer o manual e os objetivos do Judiciário com essa prática. “Temos percebido que é preciso diálogo com todos os envolvidos e mudar a questão cultural de forma geral. Se o preconceito prevalece contra essas comunidades, adotar as orientações do manual pode não ter o efeito esperado”, salientou.

Além de intérpretes

Já em Amambai, há a segunda maior população indígena do estado. Para a juíza Thielly Dias de Alencar Pitthan, responsável pela comarca durante a realização do projeto, a experiência mudou sua forma de encarar as comunidades tradicionais. “As infâncias devem ser protegidas, mas a criança indígena é diferente da criança branca e carece mais ainda de atenção. Imaginei que ter um intérprete fosse o suficiente, mas precisamos também de um atendimento específico.”

A magistrada ressaltou ainda que a comunicação não se realiza apenas por meio da língua. “O processo é mais complexo do que a simples tradução, especialmente quando se trata de criança. Temos que acrescentar a isso a necessidade de conhecermos melhor o direito indigenista.” Próximo à comarca há três aldeias Guarani-Kaiowá e já existe contato com as lideranças da comunidade. Durante a implantação do projeto, foi realizado o depoimento especial de uma criança indígena vítima de violência e observou-se o que precisa ser mudado para atender essa população.

A juíza, que agora está atuando na comarca de Ponta-Porã, onde também há presença indígena, disse que levou a experiência adiante. “Fico orgulhosa por integrar um Judiciário que tem um olhar sensível à proteção da criança indígena. Estamos dando um primeiro passo com o protocolo para aplicar, de fato, o princípio da isonomia e entender que se trata de um jurisdicionado diferente. Do contrário, corremos o risco de perpetuar uma violência institucional.”

Maior qualidade na escuta

Em Mundo Novo, 25% da população total é formada por indígenas. “Mesmo antes do projeto, já tínhamos preocupação com o depoimento especial de comunidades tradicionais” afirma o juiz da comarca, Guilherme Almada. As crianças eram levadas ao fórum para a oitiva e já havia uma preocupação em ter um intérprete. Depois do projeto, no entanto, houve uma mudança de qualidade na técnica, de acordo com o magistrado, uma vez que buscaram intérpretes da mesma etnia das vítimas. “Nossa intenção é que o indígena se sinta apoiado. Percebemos um salto de qualidade nos depoimentos a partir da adoção dos procedimentos antropológicos.”

A localidade tem grande incidência da língua guarani-nhandeva, que, apesar de fazer fronteira com o Paraguai, apresenta um dialeto diferente do guarani falado no país vizinho. “Já tínhamos um intérprete antes, mas, com o projeto, conseguimos um nativo, que contribuiu muito com o entrevistador forense”, disse o juiz. O tradutor também passou a atuar em outras áreas, melhorando também a qualidade da prova nos casos de violência doméstica.

Neste contexto, mais uma vez a questão cultural se manifesta, agora em relação ao gênero: o assistente social que foi preparado para fazer a entrevista é um homem, mas para o indígena, isso pode ser uma barreira. “São detalhes que temos aprendido com as lideranças. As crianças são cuidadas por mulheres. Se for uma menina, então, é realmente um problema que a assistência seja dada por um homem”, explicou o magistrado.

Guilherme Almada também aponta que as lideranças indígenas são de fácil acesso e o contato tem sido muito promissor. Já conseguiram montar uma sala de videoconferência dentro da aldeia, que fica próxima à comarca – 40 minutos de carro, em uma estrada asfaltada. Agora, o juiz pretende fazer o depoimento dentro da própria aldeia. “O assistente social vai passar a ir para a aldeia para não retirar a criança de seu ambiente, a fim de evitar a revitimização, como prevê a Lei de Depoimento Especial (Lei 13.431/2017) e a Resolução CNJ 299/2019.“

Para a antropóloga Luciana Ouriques, é possível testar o depoimento no território indígena, mediado pelo Judiciário, para que a criança não tenha que se expor. Em Mundo Novo, a aldeia também formou uma família acolhedora indígena. Isso permitiu preservar a convivência comunitária de uma criança que precisou ser afastada da família. “A atuação dos magistrados é o grande destaque nessas localidades, pois buscam a pactuação com os caciques para entender as especificidades dessa população.”

Lenir Camimura
Agência CNJ de Notícias

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