Por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) capacitou, desde o ano passado, 328 juízes em início de carreira na disciplina Políticas Raciais. O objetivo é prepará-los para atuar contra o racismo e eventuais injustiças causadas pela estigmatização da população negra. A recomendação faz parte do Protocolo de Atuação para a Redução de Barreiras de Acesso à Justiça para a Juventude Negra, assinado por diversas instituições em outubro de 2013.
A disciplina Políticas Raciais passou a fazer parte da grade curricular, que já incluía matérias como o Judiciário e a Sociedade; Direito Eleitoral; o Juiz e as Relações Interpessoais e Interinstitucionais; Mediação e Conciliação; Vara da Infância e Juventude; e Sistema Carcerário. O instrutor de Políticas Raciais é o promotor de Justiça Thiago André Pierobom, coordenador dos Núcleos de Direitos Humanos do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (MPDFT). Para ele, é necessário reconhecer que o racismo é um problema estrutural no Brasil, ao lado de outras formas de discriminação, como a desigualdade social e o machismo, por exemplo. “Se pretendemos ter um sistema de Justiça compromissado com os valores dos direitos humanos, torna-se essencial para o magistrado que ele seja sensibilizado sobre a existência do problema do racismo e sobre o que isso, eventualmente, impacta no exercício da sua função jurisdicional”, afirma Pierobom.
Os cursos de aperfeiçoamento da Enfam são obrigatórios para juízes em início de carreira. Dos 328 magistrados que já cursaram Políticas Raciais, 107 atuam na Justiça Estadual de São Paulo, 60 na de Pernambuco, 48 na do Espírito Santo, 42 na de Goiás, 26 na do Mato Grosso e 34 na do Rio de Janeiro. Também já participaram sete juízes do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), dois do Tribunal de Justiça (TJ) do Piauí, um do TJ do Acre e um do TJ de Mato Grosso do Sul.
O promotor observa haver entre os juízes do curso uma parcela que, no início das aulas, tenta minimizar a questão do racismo no Brasil e vê o País como uma democracia racial. No entanto, acrescenta Pierobom, ao longo da instrução, surge a compreensão do problema, desconstruindo esse mito, e também uma sensibilização dos magistrados sobre a importância de o Judiciário atuar na promoção da igualdade racial. Nesse sentido, o conteúdo inclui estatísticas e estudos sobre o racismo no País.
“As principais mensagens são, primeiro, de que existe, sim, racismo no Brasil. Segundo, que o racismo é uma grave violação aos direitos humanos e não é possível haver uma democracia em que todas as pessoas não tenham o mesmo valor, em que não haja igualdade. Em terceiro, que é importante que o Judiciário seja sensibilizado a reconhecer o problema para ter uma postura ativa no sentido de construirmos uma sociedade mais justa e igualitária”, informou.
Aplicação – Um dos que fizeram o curso é o juiz Diego Costa Pinto Dantas, da 10ª Vara Criminal de Goiânia/GO. Antes, ele foi delegado de polícia no Distrito Federal e magistrado do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJBA). Por isso, estudou Políticas Raciais duas vezes na Enfam, indicado por cada um dos tribunais. Segundo ele, essa experiência tem refletido positivamente no seu trabalho jurisdicional, até mesmo na definição do tamanho da pena dos réus, conhecida no meio jurídico como dosimetria. “Acho que as inclusões racial e social são importantes tanto no âmbito cível, quando o juiz se depara com ações que tratam cotas raciais em concursos públicos, por exemplo, como na questão da valoração da pena na parte criminal, no momento em que o juiz avalia as condições sociais e econômicas do acusado. Eu levo muito em consideração isso”, disse o magistrado.
O juiz Volnei Silva Fraissat, da Vara Única de Paraúna/GO, também aplica os princípios da disciplina Políticas Raciais no desempenho de suas funções. “O curso é muito importante exatamente para termos essa visão e não sermos insensíveis ao fato, à história de vida das pessoas que foram excluídas em razão de determinado fator causado, possivelmente, por preconceito de raça ou credo”, afirmou. Ele citou o caso de dois irmãos negros de Paraúna cujos pais são dependentes de álcool e drogas e não lhes deram a devida criação. Os irmãos já cometeram vários furtos, alcançaram a maioridade no ano passado e começaram a praticar roubos. Segundo o juiz, quase todas as semanas eles sentam à sua frente como réus de processos. “Ao mesmo tempo que a sociedade cobra uma resposta por algo que causou um dano a ela, essas pessoas não tiveram qualquer tipo de acesso à educação, não tiveram saúde, não tiveram nada”, pondera. O juiz elogiou o curso da Enfam por deixar clara a importância da adoção de políticas afirmativas para a inclusão social da população negra, a exemplo das cotas raciais em universidades e concursos públicos.
A juíza substituta Acácia Soares, do TJDFT, também comentou a iniciativa do CNJ e da Enfam. “É necessário que o magistrado tenha essa visão mais holística do que é o direito, justamente dentro dos padrões que o CNJ já preconizou quanto às matérias humanísticas como obrigatoriedade de formação”, afirmou a juíza, observando que, por ter feito o curso em março, ainda não foi possível aplicar todos os ensinamentos do curso.
Ações – O Protocolo de Atuação para a Redução de Barreiras de Acesso à Justiça para a Juventude Negra, além do CNJ, tem como signatários o Ministério da Justiça, a Secretaria Geral da Presidência da República, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Procuradoria Geral da República (PGR), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o Conselho Nacional de Defensores Públicos Gerais (Condege). Todas essas instituições se comprometeram a discutir e adotar medidas de combate ao racismo. Foi nesse contexto que o CNJ recomendou a alteração da grade curricular da Enfam.
Segundo o conselheiro Guilherme Calmon, coordenador da atuação do CNJ no âmbito do protocolo, a mudança nos cursos é necessária para fazer com que os magistrados possam ter contato com informações mais especializadas, como a situação dos jovens negros enquanto alvos preferenciais da violência. Segundo o Mapa da Violência 2014, o número de jovens negros assassinados anualmente no País saltou de 17.499 em 2002 para 23.160 em 2012, um aumento de 32,4%. No mesmo período, o número relativo aos jovens brancos caiu 32,3%, de 10.072 para 6.823 casos.
“O objetivo principal é que haja, pelo menos, a ideia de uma capacitação mais específica na questão relativa à violência envolvendo a juventude negra, porque a gente identificou, e isso está como uma das ações do protocolo, que a violência vitima muito mais os jovens negros do que os jovens de outra cor. Essa violência é relacionada à hipótese de crimes graves, como homicídio, principalmente envolvendo a atividade policial”, afirmou o conselheiro.
As atividades do CNJ no âmbito do protocolo estão reunidas em um relatório preliminar encaminhado, em fevereiro, ao Ministério da Justiça, que é encarregado de sistematizar as informações de todas as instituições signatárias. O relatório informa que o Conselho, além de propor a inclusão da disciplina Políticas Raciais para o aperfeiçoamento de juízes, recomendou à Enfam que orientasse as escolas estaduais de formação de magistrados a também incluir a disciplina em sua grade curricular. A Enfam atendeu à recomendação.
Jorge Vasconcellos
Agência CNJ de Notícias