O convite inesperado, em 2018, para assumir a coordenação do Subcomitê de Acessibilidade e Inclusão do TRT23, com sede em Cuiabá (MT) trouxe mais um desafio para a vida profissional da juíza Márcia Pereira. A partir de então, o que era uma missão transformou a vida da magistrada. “Eu cresci junto com essa atuação, a ponto de me aceitar como pessoa com deficiência física”, destaca a juíza que convive com sequelas da poliomielite desde os 7 anos.
A mais de 2,5 mil quilômetros dali a juíza Luciane Sobral, do TRT22, em Teresina (PI), passou a defender a efetiva empregabilidade das pessoas com deficiência há três anos. Até então, ela supunha que a lei de cotas, a serem cumpridas pelas empresas com mais de 100 empregados, era realidade. Foi a mãe de um adulto com síndrome do espectro autista que trouxe a questão para o dia a dia da juíza.
Essas duas magistradas não se conhecem, mas em comum travam lutas diárias para a garantia de oportunidades iguais a brasileiros historicamente discriminados devido a condições físicas ou intelectuais. Elas abrem a série de matérias em homenagem ao mês da mulher, que também celebra o trabalho de heroínas como Dorina de Gouvêa Nowill. Idealizadora da fundação que leva seu nome, “conviveu por 74 anos com a cegueira e fez disso sua missão de vida”, como descreve a página de abertura do site da Fundação Dorina Nowill.
Ao perceber que o Brasil era carente de livros em braile, sistema de escrita e leitura para cegos, criou a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, que iniciou suas atividades em 11 de março de 1946, informa a página.
Mercado de trabalho
Há quase seis anos, a juíza do trabalho Luciane Sobral comprova, na prática, que o mercado de trabalho brasileiro não está preparado para empregar pessoas com deficiência. “É comum o empresário alegar que não cumpre a cota porque não há candidatos interessados na oportunidade oferecida e a justiça acolhe a justificativa”, exemplifica a magistrada, ao defender que o problema é bem anterior à eventual falta de concorrentes.
Foi a partir do questionamento de uma mãe sobre o que ela, como juíza na área trabalhista, poderia fazer para incluir autistas no setor produtivo, que Luciane foi em busca de respostas. “Eu convivia com outras mães com filhos autistas, assim como o meu. Quando estão na fase escolar, há os estudos, as terapias e demais atividades, mas, ao ingressarem na vida adulta, as alternativas desaparecem e não há um preparo para o ingresso em uma atividade econômica”, diz.
Esse preparo não ocorre nem por parte das empresas que precisam cumprir a cota de empregados com deficiência nem pelas empresas e instituições que devem capacitar os trabalhadores. Ela se deparou com essa realidade ao dar início à sua procura pelas oportunidades de trabalho para pessoas com deficiência. A jornada teve início em 2017, quando procurou o Ministério Público do Trabalho e organizações como o Serviço Social do Comércio (Sesc), o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o Sistema Nacional de Emprego (Sine), entre outras.
A partir da iniciativa, foi criado um grupo para troca de experiências sobre o tema, com a participação de diversos atores, no intuito de ampliar as informações sobre as oportunidades. Ela acrescenta que as famílias das pessoas com deficiência não tinham conhecimento sobre onde ou quando procurar as oportunidades.
Uma das saídas para esse impasse foi organizar a participação do grupo em um evento. Assim, foi lançado o Fórum Piauí de Inclusão, que chegou à terceira edição em setembro de 2022. Nesse encontro, são reunidos empresários interessados em atender às cotas e quem busca colocação no mercado de trabalho. A magistrada ressalta que o evento “é apenas um caminho para ampliar a discussão sobre a inclusão das pessoas com deficiência no mercado de trabalho”.
A juíza Luciane lembra que a inclusão está intimamente ligada à acessibilidade nas suas mais diversas representações. Mas ressalta que, para chegar ao local de trabalho, a pessoa com deficiência necessita de transporte disponível e adaptado às suas necessidades, de um espaço urbano mais amigável, de um ambiente de trabalho também receptivo como rampas, piso táctil ou instrumentos de trabalho adequados. “As barreiras são inúmeras, mas precisam ser discutidas e enfrentadas se verdadeiramente queremos uma sociedade mais inclusiva”, reforça.
Para 2023, a expectativa é realizar mais uma edição do Fórum de Inclusão e levar ao conhecimento do Executivo local a atuação do grupo de trabalho. “Queremos chamar a atenção da sociedade para o que realmente é acessibilidade e inclusão, na mesma proporção que as pessoas com deficiência precisam ter seus direitos reconhecidos”, reforça a magistrada.
Reconhecimento
Em 2018, ao assumir a coordenação do Subcomitê de Acessibilidade e Inclusão do TRT23, a juíza Marcia Pereira começou a aprender com os integrantes do grupo as necessidades das pessoas com deficiência. “O subcomitê era composto, por exemplo, por um colega deficiente visual e uma servidora com baixa visão”, relembra a magistrada. Assim, uma das primeiras iniciativas foi a elaboração de uma cartilha, dirigida tanto ao público interno quanto externo do judiciário. O material desenvolvido no TRT23 ganhou versão em braile e libras, a Língua Brasileira de Sinais.
A partir das orientações sugeridas na cartilha, a magistrada e seus pares atuaram para promover ajustes nas varas de Cuiabá. “As adequações foram feitas de acordo com a ABNT NBR 9050, que estabelece os critérios de acessibilidade nas edificações”, resume a magistrada. Para além disso, o tema foi objeto de palestras e lives com a participação de deficientes, como o intuito de sensibilizar sobre o que, realmente, é acessibilidade. “É preciso mudar o olhar para entender as necessidades das pessoas e oferecer a adequação razoável”, diz a magistrada.
No ano passado, o trabalho do Subcomitê foi reconhecido pela Câmara Municipal de Cuiabá com uma Moção de Aplauso. Ao agradecer pela homenagem, Márcia falou em público pela primeira vez sobre a sua condição de deficiente física. Aos 7 anos, a magistrada precisou fazer uma cirurgia no pé, devido à poliomielite. Com a idade, ela disse sentir mais necessidade de apoio ao caminhar. “Por falta de acessibilidade tive algumas quedas e fraturas”, conta.
A juíza Márcia ressalta que atuar na subcomissão a tem feito crescer como ser humano. Ela reforça que o tema precisa estar presente na vida das pessoas como qualquer outro aspecto. “Só convivendo e aceitando as diferenças, seremos inclusivos”, define.
Dorina Nowill
Dorina nasceu em São Paulo, em 28 de maio de 1919, e ficou cega aos 17 anos de idade, vítima de uma doença não diagnosticada. Ela foi a primeira aluna cega a frequentar um curso regular na Escola Normal Caetano de Campos e conseguiu a integração de outra menina cega num curso regular da mesma escola. Posteriormente, Dorina colaboraria para a elaboração da lei de integração escolar, regulamentada em 1956.
Ao perceber a carência, no Brasil, de livros em braile, o sistema de escrita e leitura para cegos, Dorina criou a Fundação para o Livro do Cego no Brasil, que iniciou suas atividades em 11 de março de 1946. Dorina se especializou em educação de cegos no Teacher´s College da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, EUA.
Texto: Margareth Lourenço
Edição: Karina Berardo
Agência CNJ de Notícias