As demandas das pessoas e povos indígenas relacionados à manutenção da cultura, desde a língua e as tradições, até a própria demarcação de terras foram tema da reunião do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas aos Povos Indígenas (Fonepi), nessa quarta-feira (24/4), na sede do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em Brasília. O colegiado promoveu uma escuta ativa de lideranças, que tem como objetivo democratizar o debate sobre as questões indígenas.
Atualmente presidido pelo conselheiro João Paulo Shoucair, o fórum foi criado com o intuito não apenas de fazer um levantamento das ações voltadas a causa indígena, mas também de monitorá-las. “O Fonepi tem em sua composição 12 entidades com representações indígenas. Continuem firmes e fortes para que, juntos, possamos defender a causa indígena. Saibam que o CNJ estará presente para abraçar essa luta”, afirmou.
A secretária-geral do CNJ Adriana Cruz destacou que o Conselho Nacional de Justiça tem compromisso com as causas defendidas na Constituição Federal e que, num órgão multiportas, há uma unidade de propósito. “O Fonepi é apenas um dos espaços onde essa temática pode ser tratada”. Ela também agradeceu às lideranças indígenas pela disponibilidade para o diálogo, que contribui para o entendimento do Judiciário. “A vulnerabilidade que nos é imposta não está escrita em pedra e essa história pode ser diferente. É para isso que estamos trabalhando”, disse Adriana Cruz.
Para o advogado indígena Maurício Terena, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), o trabalho do CNJ permite pensar em um Judiciário mais plural. Membro do Fonepi, o advogado incentivou os representantes indígenas a apresentarem a realidade dos respectivos territórios. “Estamos aqui para garantir nossas vozes. No acampamento Terra Livre, discutimos a questão do marco temporal e agora podemos apresentar nossas preocupações”.
O 20º Acampamento Terra Livre, maior evento de mobilização indígena do Brasil, está instalado na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, desde o último dia 23 de abril e pede a demarcação de terras, garantia dos direitos aos povos originários e fim da violência nos territórios.
O juiz auxiliar da Presidência do CNJ, Jônatas dos Santos Andrade, pontuou que o Fórum é uma porta desenhada dentro do sistema de Justiça que atenta para a causa indígena e democratiza o acesso a esses povos. O juiz destacou ainda que é um dos 11 magistrados indígenas do país. “Isso, para mim, é algo restaurador, mas essencialmente um desafio árduo de incitar e tentar colaborar com essa luta emancipatória”, afirmou.
Andrade informou que o CNJ tem ampliado a abordagem dessa temática, com resoluções de adequado tratamento do “conflito entre o indígena e o não-indígena”. Ele ressaltou também que essa é uma luta por um mundo menos desigual e que “conspire para a sustentabilidade”.
Declarações
As lideranças indígenas que participaram da reunião do Fonepi, dentre eles advogados indígenas, caciques e representantes de conselhos indígenas, destacaram as dificuldades enfrentadas para ter acesso à Justiça. Para eles, o Poder Judiciário precisa ser mais plural e intercultural, contando com a participação indígena para a construção de normativos e recomendações. Além disso, destacaram a necessidade de uma educação e saúde diferenciadas que colaborem com a manutenção da cultura tradicional. Eles lembraram que as riquezas dos povos são as diversidades étnicas, culturais, cuja defesa é estabelecida na Constituição Federal, o que também foi fruto da mobilização na época que a Carta Magna foi promulgada.
Informaram ainda que aprender uma nova língua – o português – para poderem ser entendidos é uma ferramenta de luta. Também destacaram a importância da formação dos advogados indígenas, para defender seus direitos. Ainda reforçaram que a maior marca cultural é a terra, mas que até hoje discutem se as terras devem ser demarcadas. Para eles, os povos originários já estavam aqui e têm direito aos seus territórios, sem que a colonização brasileira se reinvente com o passar do tempo.
Sob esse contexto, os participantes salientaram que o direito à vida é ameaçado sem ações concretas para garantir o futuro das novas gerações, isso inclui a demarcação das terras, que é a base da luta indígena.
Ações
Ao final do debate, o conselheiro Shoucair pontuou que o Fonepi está trabalhando em um relatório sobre o monitoramento das ações sobre o tema. Também lembrou que, em 2023, o CNJ publicou uma Constituição Federal traduzida para a língua Nheengatu, conhecido como o tupi moderno. O idioma é uma das quatro línguas cooficiais de São Miguel da Cachoeira (AM), reconhecido como o município mais indígena do país. “Temos exemplares para que possam conhecer nossos quase 300 artigos da Constituição, em uma língua originária. Nosso objetivo é nos aproximarmos”, disse.
Além disso, o CNJ também está implantando outras ações referentes ao tema, como a concessão de bolsas de estudo e manutenção para candidatos negros e indígenas que desejarem prestar o Exame Nacional da Magistratura (Enam) e concursos da magistratura. As bolsas fazem parte do Programa CNJ de Ação Afirmativa e têm como objetivo preparar os estudantes para competirem em condição de igualdade com os outros candidatos por uma vaga no cargo de juiz. A Resolução CNJ nº 512/2023 dispõe ainda sobre a reserva de 3% de vagas para pessoas indígenas nos concursos de magistratura. Segundo dados do Diagnóstico Étnico-Racial do CNJ, divulgado em setembro de 2023, 14,5% dos magistrados se reconhecem como negros e apenas 0,2%, como indígenas.
O CNJ também aprovou, neste ano, a adoção de novas regras para provimento de cargos efetivos de concursos para servidores do Poder Judiciário. A partir de agora, os candidatos indígenas e com deficiência terão as mesmas notas exigidas para os negros, ou seja, 20% inferior ao cobrado para aprovação dos concorrentes de ampla concorrência, que representa 60% do total. O objetivo é assegurar o tratamento isonômico aos cotistas que desejam ingressar como servidores no Judiciário.
Quanto ao tratamento de adolescentes indígenas em medidas socioeducativas, o CNJ aprovou a Resolução CNJ nº 524/2023 que trata de questões como autoidentificação da etnia ou povo e da língua, bem como a presença de intérprete de português em todas as fases do processo, caso seja necessário. No campo da educação e da leitura, a resolução estabelece a necessidade de respeito ao idioma da pessoa indígena e a inclusão no conteúdo programático dessa língua, bem como história e cultura dos povos indígenas. Desde 2019, o CNJ já tinha normatizado (Resolução nº 287/2019) o tratamento de pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, que era aplicada em alguns pontos para os adolescentes.
Para o depoimento especial de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais vítimas ou testemunhas de violência, o CNJ tem orientações, desde 2021, publicadas num Manual específico sobre a questão. O documento considera aspectos culturais das comunidades indígenas, como a disponibilidade de intérpretes que possam mediar a comunicação, além da capacitação de entrevistadores forenses que sejam familiarizados com a cultura e os direitos dessas pessoas.
Veja o álbum completo da reunião no Flickr do CNJ
Texto: Lenir Camimura
Edição: Beatriz Borges
Agência CNJ de Notícias