No Brasil, dados mais recentes do governo federal indicam que cerca de 150 mil adolescentes entre 12 e 18 anos cumprem medidas socioeducativas por terem cometido algum ato infracional, sendo que pelo menos 24 mil se encontram em privação de liberdade. No entanto, a dificuldade na gestão de sistemas de informação, as falhas na articulação entre atores e os desafios na consolidação de estruturas e fluxos adequados acabam desvirtuando o funcionamento de um sistema que deveria promover a autonomia e a emancipação desses adolescentes, essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e digna para todos.
Desde julho, o sistema socioeducativo tornou-se mais um dos focos do programa Justiça Presente por meio de parceria entre o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). São diversas ações previstas, que vão desde antes de o adolescente ingressar no sistema socioeducativo até a garantia de direitos para os que estão internados e voltarão ao convívio social. O foco é garantir acesso à educação e à qualificação profissional, assim como o acompanhamento constante durante a internação e o reforço a laços familiares e comunitários.
O Justiça Presente buscará incidir em instrumentos que regem o funcionamento do socioeducativo, como sistemas de informação e de atenção, fortalecendo a atuação de todos os envolvidos. As ações seguem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), assim como o Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo. Elaborado pela Secretaria de Direitos Humanos em 2013, o plano preconiza que as medidas socioeducativas “(re)instituam direitos, interrompam a trajetória infracional e permitam aos adolescentes a inclusão social, educacional, cultural e profissional”.
De acordo com a coordenadora adjunta do eixo do socioeducativo no Justiça Presente (Eixo 2), Fernanda Givisiez, o cometimento de ato infracional por adolescentes se relaciona diretamente à negação de direitos sociais básicos a que foram submetidos durante sua formação. “Partindo desse cenário, garantir esses direitos no sistema socioeducativo não é tarefa fácil, mas essencial no contexto de proteção integral à criança e ao adolescente previsto nas legislações brasileiras e internacionais. A base já existe, o desafio é a implementação das medidas”, avalia.
Para o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema Socioeducativo (DMF/CNJ), Luís Geraldo Lanfredi, como também para o juiz auxiliar da Presidência, Gustavo Direito, o desconhecimento sobre o sistema socioeducativo impede a maior efetividade de políticas públicas. “Precisamos saber mais sobre quem são os adolescentes cumprindo medidas socioeducativas e qual o contexto atual do sistema socioeducativo no país. Ter uma exata impressão desse panorama permitirá construir ações para que essas pessoas, que mal iniciaram a vida, tenham oportunidades de construir trajetórias que lhes permitam o pleno desfrute e exercício da cidadania”, aponta Lanfredi.
Ação
O Justiça Presente vem no caminho de outros programas que buscaram entender e fortalecer o sistema de medidas socioeducativas, em órgãos como o próprio CNJ e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Para estruturar as ações, os 27 coordenadores estaduais do programa, alocados em todas as Unidades da Federação, iniciaram coleta de dados detalhados sobre o funcionamento do sistema pelo Brasil e, posteriormente, pactuarão as ações com atores dos poderes Judiciário e Executivo.
“Buscamos estruturar a atuação do programa de acordo com as realidades locais, garantindo horizontalidade e continuidade de nossas ações”, explica a coordenadora do Justiça Presente, Valdirene Daufemback. Segundo ela, foram construídos planos estaduais para nortear a atuação, tendo sempre o adolescente como sujeito de direito. “Queremos que o sistema socioeducativo sirva para possibilitar trajetórias de vida socialmente integradas. Para tanto, apostamos em ações de escolarização e profissionalização, políticas públicas básicas, mas que não foram implementadas adequadamente.
Além da coleta de dados estaduais, está em curso o aperfeiçoamento dos sistemas de monitoramento Cadastro Nacional de Adolescentes em Conflito com a Lei (CNACL) e Cadastro Nacional de Inspeções em Unidades de Internação e Semiliberdade (CNIUS), ambos ligados ao CNJ. A medida atende a demandas formuladas pelos Tribunais de Justiça e busca produzir subsídios para orientar políticas públicas. Ainda na seara da gestão da informação, serão elaborados modelos de indicadores para avaliação do Plano Individual de Atendimento (PIA), instrumento essencial no acompanhamento do cumprimento de medidas.
Uma equipe multidisciplinar, que envolve psicólogos e assistentes sociais, entre outros profissionais, elabora um plano para cada adolescente e para sua família, com metas e desejos de realização pessoal e profissional, por exemplo.
Racionalização
A melhoria na gestão de informações terá um impacto positivo em outa frente de ação do programa, que busca a racionalização na aplicação de medidas de internação. Essa ação atende à determinação do ECA e de parâmetros internacionais que preconizam a brevidade e excepcionalidade das internações. No Brasil, um levantamento do CNMP indicou que um mesmo ato infracional pode implicar em medida de nove meses em um estado e até dois anos e meio em outro. Segundo outro estudo do CNMP, no sistema socioeducativo em geral “há superlotação, poucas oportunidades de formação educacional e profissional, espaços insalubres, rebeliões das unidades, fugas, dificuldades de atendimento de saúde, entre tantos outros”.
Uma das ações previstas neste eixo estratégico é o apoio ao desenvolvimento dos Núcleos de Atendimento Integrados (NAI), equipamento que reúne atores como Tribunal de Justiça, Ministério Público e Secretarias de Educação, Saúde e Assistência Social, por exemplo. Também serão criadas metodologias de audiências concentradas, para que haja reavaliação constante das medidas impostas aos adolescentes. Para tanto, serão mapeadas experiências já existentes e implantados projetos pilotos.
Está previsto, ainda, o desenvolvimento de Núcleos de Justiça Restaurativa nos estados. Centrais de Vagas, que controlam o número de adolescentes internados de acordo com as vagas disponíveis, também serão propostas, garantindo que a internação sirva como espaço de desenvolvimento pessoal. Ações de fortalecimento do meio aberto, para o fortalecimento dos laços familiares e comunitários com acompanhamento, serão efetivadas. Todas essas ações serão pactuadas previamente com os Tribunais estaduais e em cooperação com União, estados e municípios.
Aperfeiçoamento do SINASE
Instituído pela Lei n. 12.594/2012 com base em normativas internacionais, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE) envolve diversas áreas de governo, representantes de entidades e especialistas, desenvolvendo programas intersetoriais de atendimento socioeducativo. Nos últimos sete anos, o sistema enfrenta desafios para sua implementação, principalmente na articulação da rede necessária para o funcionamento, que envolve atores das três esferas do Poder Executivo. Buscando auxiliar neste quadro, o Justiça Presente trabalha no desenho de matriz de conteúdos mínimos para formação inicial e continuada de magistrados e servidores, incluindo a inserção de módulo sobre o SINASE na matriz curricular das Escolas de Magistraturas estaduais.
Outro eixo estratégico de atuação do Justiça Presente se debruça sobre estratégias de aumento da escolarização e profissionalização dos adolescentes. Para tanto, serão propostos fluxos para a emissão de documentação civil para adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa como primeiro passo. Outras medidas incluem instituir políticas permanentes de acompanhamento para adolescentes pós-cumprimento de medidas e aprendizagem profissional deles. A ideia é pactuar com Institutos Federais e agências do Sistema S, como Senai e Sesc, a oferta de vagas em cursos profissionalizantes.
Iuri Tôrres
Agência CNJ de Notícias