Em um cenário de desigualdades, com racismo estrutural e múltiplas formas violências, as mulheres negras, periféricas e integrantes comunidades tradicionais, como quilombos, lideram as estatísticas de violência no Brasil.
Neste dia 20 de novembro, data em que se celebra o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) inicia a campanha 21 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência contra Mulheres. Ao longo da campanha, o Portal do CNJ trará uma série de matérias especiais que difundem ações do Judiciário no combate à violência de gênero, um dos principais desafios enfrentados pelo Poder Judiciário no país.
Nesse contexto que afeta mulheres de todas as idades, cores e classe social, o atendimento às vítimas e a promoção da equidade racial em comunidades isoladas e vulneráveis por todo Brasil é um desafio que ganha aliados ao longo dos anos. A partir de instrumentos normativos editados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os Tribunais de Justiça de Goiás (TJGO) e do Tocantins (TJTO) desenvolvem ações e programas para educação, prevenção e combate à violência em comunidades quilombolas, ribeirinhas e vulnerável.
Antirracismo
Com três ações distintas e, de certa forma, complementares, o TJGO realiza um trabalho junto ao território Kalunga, que reúne 39 comunidades nos municípios de Monte Alegre, de Teresina de Goiás e Cavalcante. De acordo com o Censo Demográfico 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Goiás tem mais de 30 mil pessoas que se autodeclaram quilombolas. O contingente está distribuído em 64 municípios, mas é em Cavalcante uma das cidades com maior proporção dessa população, cerca de 57% do total 9.589 moradores.
O programa Roda Antirracista, que propõe diálogo em grupos, teve a sua primeira edição composta somente por mulheres quilombolas de Cavalcante, quando foram debatidos temas como acesso à educação, violência de gênero, masculinidade e racismo. “Nessa experiência, percebemos como as mulheres da região são afetadas. A educação é um dos focos das discussões porque a violência de gênero nessas localidades as impede de estudar”, destacou a juíza Erika Barbosa Gomes Cavalcante, vice-coordenadora da Mulher da corte goiana e coordenadora Projeto Roda Antirracista: Diálogos para a Democracia Racial.
Em uma comunidade quilombola, a violência contra a mulher apresenta características distintas daquela sofrida por pessoas do sexo feminino nos grandes centros urbanos. Por se encontrarem em áreas rurais, em geral, distantes e isoladas, desde muito novas elas se veem forçadas a trabalhar no serviço doméstico longe de seus territórios, sob o pretexto não apenas de terem uma fonte de renda, mas de conquistarem a oportunidade de estudar, o que nem sempre acontece. A realidade é, segundo a magistrada, bastante diferente. “As jovens forçadas a trabalhar em ambiente doméstico são exploradas, muitas vezes violentadas sexualmente. Há relatos de estupros com filhos nascidos desse tipo de agressão”, detalha.
O trabalho junto às comunidades Kalunga foi construído por meio de uma combinação de programas e projetos desenvolvidos pelo TJGO, como o Justiça Itinerante prevista pela Resolução CNJ n. 460/2022 e implementada pelo TJGO em 2022. Além disso, tem sido realizadas ações como o Raízes Kalungas – Justiça e Cidadania, com a instalação de alguns Pontos de Inclusão Digital (PIDs), previstos na Resolução CNJ n. 508/2023, nas comunidades quilombolas, onde é possível pedir ajuda às polícias civil e militar em caso de emergência.
Violência contínua
Com forte atuação em todo o estado, a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid) ligada ao TJTO coordena ações preventivas e de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra mulheres que residem nas principais comunidades quilombolas, assentamentos e áreas ribeirinhas da região. “São realizadas palestras e rodas de conversas no sentido de orientar e difundir as medidas que podem ser adotadas” explica a servidora do Cevid, Viviane Gomes. Segundo ela, são repassadas informações sobre o funcionamento dos órgãos e das entidades envolvidas nas redes de suporte disponíveis, além de canais para denúncia e instrumentos de proteção às mulheres em situação de violência.
Entre agosto e setembro deste ano, foram realizadas rodas de conversa em diversas comunidades, distribuídas em 19 municípios tocantinenses, onde foram ouvidas quase 600 pessoas, entre homens e mulheres quilombolas, ribeirinhos e pescadores. Durante uma palestra proferida na Comunidade Quilombola do Cocalinho, na cidade de Santa Fé do Araguaia, uma participante relatou que sua avó teve 12 gestações, porém somente, seis crianças se desenvolveram devido as agressões sofridas pelo então companheiro.
Das quatros áreas visitadas na ação, somente na Comunidade Quilombola Santa Maria das Mangueiras, do município de Dois Irmãos do Tocantins, foram registrados dois feminicídios. Em todos os encontros, foram abordados temas como violências física, psicológica, patrimonial e moral contra mulheres. Na cidade de Brejinho de Nazaré, na Comunidade Quilombola Malhadinha, houve discussão a respeito dos conflitos desencadeados por expectativas culturais em torno dos papéis de gênero, o que reforça a necessidade de educação permanente na comunidade.
No Assentamento Santa Rita, localizado em Cariri do Tocantins, uma das mulheres procurou a psicóloga responsável pelo encontro para relatar que sofreu violência contínua por parte de seu ex-companheiro, já está falecido. Informações da vítima mostram que apesar da tentativa de separação, nunca houve real afastamento, fato que provocou traumas, além de dificuldade em estabelecer novas relações.
Nos debates conduzidos por psicólogos, pedagogos e assistentes sociais do TJTO em Chapada da Natividade, no Quilombo Redenção, mulheres quilombolas discutiram amplamente sobre os fatores de risco de violência física e moral.
Números
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2024 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, referente a 2023, revelam que houve 77.083 registros de stalking (perseguição), 778.921 ameaças a mulheres, 38.507 registros violência psicológica e, houve ainda a concessão de 540.255 Medidas Protetivas de Urgência. Do total de 1.467 vítimas de feminicídio, 63,6% são negras e 64,3% das mulheres vítimas desse tipo de crime, foram mortas em casa.
Em outra pesquisa, denominada Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil (2018-2022), elaborada pela Terra Direitos e pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), mostra que dos 32 assassinatos de quilombolas em cinco anos, nove eram mulheres, todas vítimas de feminicídio. Conflitos fundiários e violência de gênero estão entre as principais causas dos assassinatos de quilombolas no Brasil, segundo o estudo.
Texto: Ana Moura
Edição: Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias