Cumprir pena em regime fechado em uma das piores penitenciárias do Brasil e conseguir sair de lá gostando de ler livros não é algo trivial. Mas aconteceu com Milton*. Ele conta que sobreviveu aos quatro anos de prisão no Complexo Penitenciário de Gericinó, também conhecido como Bangu, com a ajuda dos livros doados pelo Programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
“Nunca fui de estudar, mas na prisão cultivei o hábito de ler. Era uma forma de ocupar a minha mente e de não enlouquecer. A biblioteca é um presente para aqueles que estão em regime fechado. Passava os dias lendo e incentivando os colegas que mostravam interesse pela leitura. Posso afirmar que os livros me deram força para suportar as adversidades da prisão”, conta Milton. Depois que cumpriu sua pena, ele foi trabalhar como copeiro e hoje sonha em fazer uma faculdade.
Ação no Complexo do Gericinó levou cidadania a presos. Foto: Felipe Cavalcanti/TJRJ
Além dos 600 livros doados para a biblioteca do presídio, o Justiça Itinerante do TJRJ também foi responsável pela emissão de 250 CPFs, 40 certidões de nascimento e 1,7 mil atestados de pena – que informam a data do possível fim de cumprimento – aos presos do Complexo. E o programa também aproxima a Justiça de pessoas em situação de rua, moradoras de favelas, prostitutas e outros grupos que sofrem com a exclusão social.
No Rio de Janeiro, quase 1,5 milhão de pessoas conseguiram documentos, direitos previdenciários, quitações de dívidas e acertos em relação a questões familiares, como casamento, separação, divórcio, guarda de filhos, adoção e inventários. Somente esse ano, mais de 60 mil atendimentos ocorreram em 26 localidades. Entre elas, estão comunidades como Rocinha, complexo da Maré, Complexo do Alemão e Cidade de Deus.
“O diferencial da Justiça Itinerante é oferecer serviços judiciários de forma célere e sem formalismos aos cidadãos que possuem dificuldade de acesso aos serviços públicos, seja por viverem em localidades distantes das sedes das comarcas ou por sua vulnerabilidade socioeconômica”, explica a desembargadora Cristina Tereza Gaulia, que foi a idealizadora e coordenou o projeto do TJRJ por 16 anos.
Para ela, que também é membro do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário e diretora-geral da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, a iniciativa também aproxima a magistratura do contexto social vivido no país. “Juízes precisam conhecer a realidade das pessoas, sair de seus gabinetes, alargar o conhecimento, desenvolver empatia. Dessa maneira conseguirão levar a prestação dos direitos fundamentais a quem mais precisa, contribuindo para a justiça social.”
Acesso a direitos
Em uma das edições do programa no reduto de prostituição conhecido como Vila Mimosa, na capital fluminense, vários serviços foram disponibilizados, como investigação de paternidade, guarda de filhos, documentos civis e requalificação civil. A experiência ocorreu durante três anos e foi suspensa com a pandemia da Covid-19.
Entre as 30 mulheres atendidas, Simony*, de 45 anos, foi uma das beneficiadas. Durante o atendimento, ela conseguiu a conversão de sua união estável em casamento, deu entrada no reconhecimento de paternidade dos filhos e seu companheiro retirou a segunda via da carteira de trabalho.
O TJRJ implantou o programa no mesmo ano em que foi sancionada a Emenda Constitucional nº 45/2004 – a mesma que criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O texto constitucional ordenou aos ramos de Justiça estadual, federal e trabalhista a instalação da Justiça Itinerante, por meio de realização de audiências e demais funções da atividade jurisdicional, utilizando equipamentos públicos e comunitários.
O CNJ reforçou o dever dos tribunais ao publicar a Resolução n. 460/2022, que determina aos órgãos estaduais, federais e trabalhistas que adotem a Justiça Itinerante para levar serviços às pessoas em vulnerabilidade ou que vivam em localidades de difícil acesso. Por se tratar de um país com imensas diferenças geográficas e sociais, a definição da melhor forma de aplicar fica a cargo dos tribunais, de acordo com as particularidades locais. Há órgãos que utilizam ônibus, caminhões, vans e, em alguns lugares, até barcos.
A resolução ainda sugere que periodicamente sejam realizadas semanas de ações itinerantes, respeitando os princípios da jurisdição ampla, cooperação judiciária e universalidade da jurisdição. Também são indicados que sejam seguidos critérios da oralidade, simplicidade, celeridade, efetividade, coleta imediata de provas e, sempre que possível, buscando a autocomposição entre as partes dos conflitos.
Cidadania
Ônibus Rosa amplia atendimentos às mulheres vítimas de violência. Foto: TJES
No Espírito Santo, o Juizado Itinerante da Lei Maria da Penha atende casos de violência doméstica, oferecendo atendimento psicossocial às vítimas, concedendo medidas protetivas e orientando as mulheres sobre as possíveis tratativas judiciais. Durante uma ação do Ônibus Rosa ocorrida em março, 60 medidas protetivas foram concedidas e foram deferidos 10 afastamentos do lar.
A coordenadora estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), Hermínia Azoury, afirma que a ação faz muita diferença na vida das mulheres em situação de risco. “Quando a Justiça age com antecedência, evita o agravamento dos casos.”
Uma das características que permite a eficácia da Justiça Itinerante é a atuação em rede, em cooperação com outras instituições do Sistema de Justiça. É o caso das equipes que participam de atividades da Justiça Itinerante em comunidades ribeirinhas e indígenas nas regiões norte do país. Em março, o Tribunal Regional do Trabalho da 11ª Região (TRT11) percorreu 21 cidades de Roraima que não possuem varas trabalhistas.
Parceria com órgãos públicos fortalece a Justiça Itinerante. Foto: TRT11
Ministério Público, Defensoria Pública, Instituto de Identificação, Receita Federal, cartórios, Fundação Nacional do Índio (Funai), além das prefeituras, foram parceiros na ação, que permitiu que a população resolvesse reclamações trabalhistas diversas, como anotações da carteira de trabalho, rescisão de contrato de trabalho, manifestações relativas a salários em atraso, extras adicionais e seguro-desemprego.
No Mato Grosso do Sul, magistratura federal e representantes de diversos órgãos, como o INSS, percorreram mais de 200 quilômetros por dentro de comunidades rurais pantaneiras para levar serviços à população. “Estamos humanizando a Justiça”, afirma a juíza e diretora do foro da Seção Judiciária do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3), Monique Marchioli Leite.
O Juizado Especial Itinerante do TRF3 é realizado em duas fases nas localidades. Na primeira etapa, são feitos os atendimentos primários, atermações, encaminhamentos etc. Na segunda, seis meses depois, a equipe retorna para proferir sentenças, realizar audiências e perícias quando for o caso. Para isso, conta com o apoio de um caminhão adaptado com sala de audiência e estrutura necessária para o atendimento às pessoas.
No Assentamento Taquaral, em Corumbá (MS), a primeira fase foi promovida entre os dias 16 e 20 de novembro de 2021. Durante a ação, foram realizados 209 atendimentos de assistência social, 108 expedições de RGs, 57 orientações jurídicas, 42 atendimentos para ações – com 10 ações ajuizadas -, 32 encaminhamentos para ajuizamento de demandas, dois acordos formalizados e 32 protocolos de atendimento do INSS. Na segunda etapa, de 4 a 8 de abril deste ano, foram 36 audiências, das quais 11 com perícia médica, 23 acordos homologados e 30 atendimentos de orientação jurídica, além de 226 atendimentos realizados pelo Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
Professor e alunos da UFMS prestaram atendimento, em abril, no Assentamento Taquaral. Foto: TRF3
Em um dos atendimentos, foi concedido salário maternidade a uma mãe de quatro filhos, que não possuía nenhum documento civil. “Sem certidão de nascimento, sem identidade, sem CPF, o cidadão não consegue ter acesso ao SUS, não consegue colocar um filho na escola, e deixa de contar com benefícios assistenciais e previdenciário”, explica Monique Marchioli Leite.
“Há uma invisibilidade muito grande ainda no país. São pessoas que não chegam ao Judiciário convencional, mas a justiça itinerante faz essa busca ativa, vai até essas pessoas”, afirma a magistrada, para quem o benefício desse trabalho supera as questões judiciais. “Transforma a vida das pessoas que são atendidas; devolve, muitas vezes, a dignidade dessas pessoas, mas muda principalmente a nossa vida.”
(*) Nomes alterados a pedido das pessoas entrevistadas
Texto: Regina Bandeira
Edição: Márcio Leal
Agência CNJ de Notícias