A imagem de um magistrado trabalhando dentro de seu gabinete, em frente a uma pilha de processos, está distante de representar o cotidiano de muitos juízes do Nordeste do país. Durante o ano todo, os juízes se deslocam em mutirões itinerantes para levar justiça ao cidadão: seja no interior da Paraíba, fazendo a escuta de crianças vítimas de abuso, seja realizando casamentos comunitários em locais isolados do Piauí ou ainda fazendo audiências de testemunhas de crimes Ceará adentro.
Os programas de Justiça Itinerante são estabelecidos pelos Tribunais de Justiça (TJs) para que magistrados e servidores possam viajar por locais do interior nordestino a fim de levar cidadania e serviços do Judiciário à população.
Para a conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Daldice Santana, presidente da Comissão de Acesso à Justiça e Cidadania do órgão, não são raras as vezes em que se pode identificar que a população é mais carente onde há mais distanciamento físico do Poder Judiciário e de outros serviços públicos.
A atuação de magistrados na Justiça Itinerante, uma política incentivada pelo Conselho, é regulamentada pelo Provimento n. 20/2012 da Corregedoria do CNJ. “A Justiça Itinerante é movida pela criatividade, pelo empenho e pela dedicação de juízes, servidores públicos e colaboradores, representando a ideia, como diria a ministra Cármen Lúcia [presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do CNJ], de um ser humano cuidando de outro ser humano. É um trabalho que dignifica a função de todas as pessoas envolvidas”, diz a conselheira Daldice.
Depoimento especial itinerante
Desde 2013, na Paraíba, servidores do tribunal de Justiça viajam pelas comarcas para realizar a escuta sensível de crianças e adolescentes que são vítimas ou testemunhas de violência sexual, o chamado depoimento especial. A técnica passou a ser obrigatória com a Lei n. 13.431, sancionada no último dia 4 de abril, mas já vem sendo adotada amplamente pelos juízes com base na Recomendação n. 33, de 2010, do CNJ. “No início nós íamos com um ônibus que possuía a estrutura de um cartório, mas como chamava muito a atenção nas pequenas cidades, passamos a usar veículos menores”, conta o Juiz Adhailton Lacet, que coordena o projeto “Justiça para te ouvir”.
Em 2016, o projeto realizou 103 escutas em 27 comarcas do Piauí – algumas em cidades afastadas como Picuí ou Itaporanga, uma viagem de cerca de sete horas saindo de João Pessoa. A escuta humanizada é feita em salas mais acolhedoras, em que apenas o profissional capacitado tem contato com a criança, e adapta de forma não agressiva as perguntas feitas pelo juiz e advogados.
A conversa é transmitida ao vivo e gravada, podendo ser usada em outras etapas do processo, sem a necessidade de tomar um novo depoimento da vítima.
“Nem sempre o juiz tem essa habilidade, já tivemos casos de promotores perguntando se a criança sentiu prazer no abuso, por exemplo”, diz o Juiz Adhailton Lacet. De acordo com ele, a maioria dos casos ocorre com abusadores que pertencem à família e, embora exista pelo menos um caso por mês na capital do Estado, a situação é bem mais grave no interior. “Existe uma questão cultural, hábitos de abuso que ainda persistem em cidades do interior”, diz.
Casamentos comunitários
Casamentos no interior do Piauí feitos pela Justiça Itinerante. FOTO: TJPI
A servidora do Tribunal de Justiça do Piauí (TJPI), Vanessa Brandão, está acostumada a visitar cidades do interior e anunciar em carros de som e rádios comunitárias os serviços prestados pela Justiça, especialmente os casamentos comunitários. As ações se dão em comarcas distantes como Curimatá, Uruçuí e Corrente, que ficam a quase 900 quilômetros da capital Teresina. “Muitos tiram pela primeira vez a certidão de nascimento, regularizam o casamento e registram os filhos. Pessoas dizem que parece que passaram a existir naquele momento”, diz Vanessa Brandão, que atua na coordenação do programa de Justiça Itinerante do tribunal.
Além do casamento comunitário, a Justiça Itinerante oferece diversos serviços como exame de DNA para reconhecimento de paternidade e cursos de capacitação em parceria com o Sebrae. “Trabalhar na área itinerante é ver a Justiça sendo concretizada, o começo e o fim dos processos”, diz Vanessa.
Os casamentos comunitários feitos pela Justiça itinerante também são comuns em Alagoas – este ano, no município de Rio Largo foram feitos 98 casamentos e, em União dos Palmares, 65. Um dos casamentos coletivos foi feito dentro de um presídio masculino em Maceió. “Foi muito emocionante, um incentivo para que eles deixassem a vida do crime e sentissem o apoio da família”, diz o juiz André Gêda Peixoto Melo, coordenador da Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL).
O programa alagoense existe desde 1997, oferecendo a emissão de documentos, mutirões do júri e a resolução de ações cíveis de pequena complexidade. Entre estas ações estão o divórcio consensual e de guarda de alimentos. “No mutirão itinerante, um grupo de 12 juízes consegue solucionar em um só dia, casos que demorariam meses e até anos tramitando nas varas”, diz o juiz Peixoto Melo. De março a maio deste ano, mais de 9 mil pessoas foram atendidas pela Justiça Itinerante alagoense.
Descongestionamento de processos no Ceará
O desembargador Inácio de Alencar Cortez Neto, do tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), costuma passar uma semana por mês em comarcas do interior coordenando mutirões do “grupo de descongestionamento”, criado em 2015 para acelerar o julgamento de processos das comarcas cearenses que estavam com elevado volume processual.
Entre fevereiro de 2015 a dezembro de 2016, o grupo de juízes examinou 22 mil processos em 39 comarcas com objetivo de reduzir o acervo processual e melhorar o atendimento da Justiça à população – dentre elas, Chaval, na fronteira com o Piauí, e Jati, na divisa de Pernambuco, ambas situadas a aproximadamente 500 quilômetros de Fortaleza.
Este ano, o grupo optou por priorizar julgamentos de processos criminais, especialmente aqueles com réus presos provisoriamente: de março a julho, foram julgados 4,3 mil processos e realizadas cerca de mil audiências com testemunhas. “No Canindé, havia 160 réus presos provisoriamente e conseguimos julgar 1,6 mil processos”, diz o desembargador Alencar Cortez Neto.
De acordo com ele, a maioria dos processos se refere a crimes praticados em decorrência do tráfico de drogas, como latrocínios, roubos e estupros. “Houve um aumento da violência e do tráfico de entorpecentes nas cidades do interior, especialmente nas zonas rurais do Ceará”, diz.
Clique aqui para ler, também, a matéria especial a “Justiça Itinerante: juízes vão ate os ribeirinhos da Amazônia” publicada na última terça-feira(04/07).
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias