Justiça, cidadania, direitos humanos e dignidade são pilares que movem profissionais do Judiciário e de instituições parceiras em uma jornada que, além de serviço, leva esperança às comunidades ribeirinhas e afastadas das sedes das cidades. O projeto Justiça Itinerante e Direitos Humanos, coordenado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi lançado na semana passada, unindo forças com a Jornada Fluvial do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá (TJAP) ao Arquipélago do Bailique para aproximar o Judiciário dessas populações.
“Quero expressar meu profundo agradecimento e respeito por todos vocês que estão no Brasil profundo, sobretudo nesse momento pelo qual passa o país, encontrando brasileiros e brasileiras em lugares onde a Justiça tradicionalmente não chega”, afirmou o ator, diretor e ativista Wagner Moura, em mensagem especial de agradecimento e incentivo às equipes que participam da Jornada.
Moura apresentou a proposta no final do ano passado ao Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, ao conhecer experiência similar realizada pelo Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT8) no Amapá e no Pará. “Isso tem um poder tão grande que transcende a mera resolução dos casos que vão trabalhar aí, por fazer que pessoas, irmãos e irmãs do nosso país, se entendam como brasileiros e brasileiras e, portanto, merecedores do acesso à Justiça”, ressaltou na mensagem.
A conselheira do CNJ Tânia Regina Silva Reckziegel, junto com os juízes Fábio Vitorio Mattiello, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), Jonatas Andrade, do TRT8, Hugo Cavalcanti Melo Filho, do Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (TRT6) e a assessora chefe de gabinete Michaella Fregapani Lanner, participaram da viagem de cinco dias em três comunidades. A conselheira coordena e os magistrados são membros do Fórum Nacional do Poder Judiciário para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet).
Tânia Reckziegel lembra que o esforço é necessário para que a população tenha acesso à Justiça. “Trata-se de um direito fundamental e deve ser garantido a todos. É imprescindível que o CNJ atue para levar a Justiça aos moradores e às moradoras dessas comunidades, que muitas vezes não detêm meios de chegar a locais abrangidos pela unidade judiciária.”
Ela afirma que pretende levar a prática para todo o Brasil. “Além da prestação de serviços, vemos também a preocupação dos servidores em solucionar outros problemas que a comunidade enfrenta, colocando-se à disposição do público para tentar auxiliar outras demandas referentes à ação estatal, cumprindo o papel de mão amiga da sociedade.”
O presidente do TJAP, desembargador Rommel Araújo, também presente na ação, contou que o programa Justiça Itinerante vem sendo desenvolvido pelo Tribunal de Justiça há 25 anos. “É responsabilidade do Poder Judiciário levar a Justiça a todos, garantindo a aplicação da lei e promovendo a tão almejada paz social”, defendeu. “Mais importante do que sermos reconhecidos pela iniciativa pioneira e exemplar, é ver nos olhos de cada cidadão e cidadã o brilho da esperança, o lampejo do reconhecimento da própria dignidade humana sendo respeitada.”
Acesso a direitos
De segunda (29/11) e quarta-feira (1°/12), a Jornada aportou no Posto Avançado da Justiça, em Vila Progresso. Já desde às 7h30, pessoas da comunidade aguardavam ansiosas para participar de audiências e receber atendimentos nas áreas de saúde e cidadania.
A Polícia Técnico-Científica do Amapá realizou 120 emissões de carteira de identidade. “A maior procura, em relação aos serviços que a POLITEC oferece, é pelo RG, pois, devido à dificuldade financeira, a maioria não consegue ir até Macapá para solicitar esses serviços”, explicou a papiloscopista Jurema Mendes Salvador.
O Conselho Tutelar realizou pelo menos 27 atendimentos nos dias iniciais. “Já tivemos casos de abusos e de negligência – tanto escolar quanto à saúde, mas também social”, explicou a conselheira tutelar Huelma Medeiros.
A Defensoria Pública do estado atendeu 115 pessoas. Essa é a segunda vez que o órgão participa. “Durante essas duas vezes que viemos, observamos que as demandas referentes à família são maiores e um número preocupante de casos de violência doméstica”, registrou o defensor. “Isto reforça a importância de atuar junto à comunidade de forma direta, principalmente neste momento de pandemia, em que as demandas se encontram reprimidas.”
Além desses, ainda houve sete atendimentos pelo TRT8; 31 pelos Correios; 285 pelos Centros de conciliação; 24 pelo cartório; 30 pela Polícia Civil; sete pelo Ministério Público do Amapá; 40 pela Receita Federal, 175 entregas de Cartão do SUS; 10 entregas de Certidão de Nascimento; e 20 pedidos de Certidão de Nascimento. E foram também prestados serviços diversos pelo Conselho Regional de Enfermagem e Caesa.
Família
Muitos atendimentos trouxeram harmonia e cidadania para a população. Uma audiência de mediação envolveu um acordo para que o pai, Natanael, tivesse permissão para visitar os filhos. “Por meio do diálogo, conseguimos um consenso que permitirá as visitas dele aos filhos, assim como o pagamento das pensões”, explicou a mãe das crianças, Juliana.
Nilce Helena Ferreira, conciliadora e servidora do TJAP, contou que “fazemos com que as partes possam refletir sobre a necessidade e as demandas um do outro. Conversamos e colocamos a reflexão, tanto para o pai, quanto para a mãe, visando o bem-estar das crianças e garantindo os direitos de ambas as partes”, ressaltou. Nessa audiência “conseguimos regularizar as situações das duas crianças de forma completa”.
Um caso emocionante, mediado pela também servidora do TJAP Janete Alencar, foi proporcionar o reencontro entre mãe e filha após quatro anos de separação. As duas foram separadas pelo pai da criança, que falou para a filha que a mãe havia falecido. Por morarem em regiões distantes, a mãe não conseguia chegar até a filha devido à dificuldade de localização da menina, de 10 anos. “Após a audiência, as partes entraram em acordo, permitindo a convivência entre todos.”
Profissionais do Fórum de Macapá também prestaram atendimentos psicossociais. “Viemos atuar nos casos de perícia nas ações da Justiça, que envolvem processos de guarda, curatela, tutela, adoção, habilitação para adoção, além das demandas espontâneas que surgem e temos que atender fora do nosso cronograma jurídico”, explica a assistente social do TJAP, Suely Pereira Lima.
O servidor do TJAP e assistente social Izaelson Victor dos Santos considera o projeto um compromisso que já carrega na bagagem há 15 anos. “Os casos da comunidade são intensos. Então o olhar da Justiça com maior atenção e amplitude, considerando que temos escassez de serviços públicos no local, é muito importante”, defende. “Toda vez que conseguimos solucionar um problema é um grande passo para a comunidade e nosso crescimento profissional.”
Pela primeira vez participando da Jornada Fluvial, o Serviço Médico do TJAP deu suporte à saúde das equipes envolvidas e também apoiou a população. “Um dos exemplos de contribuição que estamos prestando é a coleta de DNA para os processos de investigação de paternidade, serviço que fará parte constante das próximas Jornadas. Agora, as partes poderão fazer a coleta aqui mesmo no Bailique, evitando o transtorno de ter que se deslocar até a capital.”
O casamento comunitário foi realizado na manhã de quarta-feira (1º), quando quatro casais disseram “sim” sob o testemunho atento da população da região. A juíza do TJAP Laura Costeira, que coordena pela segunda vez o Programa Justiça Itinerante, foi a juíza de paz. E garantiu que “é uma honra ainda maior, pois além de realizar e homologar audiências e oferecer a prestação jurisdicional mais rotineira, tenho uma participação ativa em uma cerimônia de tamanha importância para casais, famílias e toda a sociedade do Bailique.”
Povos indígenas
Na quinta-feira (2/12), a conselheira Tânia Reckziegel e o presidente do TJAP se reuniram com lideranças indígenas na aldeia Aramirã. Localizada no centro-oeste do Amapá, nela residem mais de 1,6 mil pessoas na Terra Indígena Wajãpi, com mais de 100 aldeias espalhadas por 6 mil km2 de área.
Esta aldeia é chefiada pela primeira vez por uma mulher, a chefe Ajareaty Wajãpi. “Queremos mais atenção e respeito à saúde de nossas mulheres indígenas, que vêm sofrendo pela falta de atendimento. Que nosso clamor seja levado a todas as autoridades para virem em nosso auxílio.”
Entre os principais pedidos apresentados pelas lideranças, estão: mais atenção à saúde do povo indígena; educação que respeite a cultura indígena local; e providências contra ataques aos territórios indígenas. “Esta reunião nos deu um novo fôlego, quando pela primeira vez o Judiciário vem para dentro da Aldeia ouvir nosso clamor e pensar em ações de cidadania e Justiça em nossas terras”, afirmou Simone Karipuna, coordenadora executiva da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Amapá e Norte do Pará.
A conselheira do CNJ destacou a importância da atuação da Justiça para a garantia de direitos dos povos originários. “Ouvi atentamente cada reivindicação e necessidade apresentada e vou levar até o Conselho Nacional de Justiça cada uma delas, além de propor a criação de um fórum de auxílio aos povos indígenas.”
O desembargador Rommel Araújo pontuou que irá propor ao Pleno do TJAP a criação de uma coordenadoria de proteção e garantia dos direitos indígenas, que deverá ser composta por um desembargador e por todos os juízes das localidades onde existam aldeias no Amapá. “Quero dizer às senhoras e aos senhores que eu cheguei aqui sem um cocar e saio daqui com esse cocar que vocês estão usando no meu coração. Levo comigo o vermelho do urucum que pinta seus rostos e estão em suas vestes como uma luta que também é minha.”
Agência CNJ de Notícias
com informações do TJAP