Dificuldades de linguagem e acesso e a necessidade de integração com órgãos e outras entidades são alguns dos desafios apresentados por membros da Justiça incumbidos de realizar o depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas de violência em comunidades tradicionais. São magistrados e magistradas que atuam em comarcas indicadas como ponto de partida de projeto-piloto que permitirá a definição de diretrizes nacionais ao atendimento e à realização de depoimento especial entre povos e comunidades tradicionais.
Os relatos foram apresentados em reunião, realizada em 7/5, pelo grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituído pela Portaria 298 de 17/12/2020. As atividades envolvem comarcas dos estados do Amazonas, de Roraima, da Bahia e do Mato Grosso do Sul. O trabalho, que também conta com consultoria fruto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), visa traçar diagnósticos e elaborar, de forma participativa, manual para aplicação de protocolo que contemple as especificidades dessas minorias étnicas e que siga os comandos dados pela Resolução CNJ nº 299/ 2019.
De acordo com o juiz da Comarca de São Gabriel da Cachoeira (AM), Manoel Átila Autran, há dificuldades para garantir a abordagem intercultural nos estados. O município é o que reúne mais indígenas no Brasil, com a presença de 23 etnias. Segundo o magistrado, são 14 dialetos falados e cinco línguas oficiais, entre as quais estão o português e o yanomami, o que dificulta o trabalho.
Já na Comarca de Tabatinga (AM), um grande número de pessoas reside em áreas afastadas do centro urbano da cidade, como informou a juíza Bárbara Marinho Nogueira. “A população indígena vive, comumente, em comunidades distantes que são percorridas por vias fluviais, em pequenas embarcações, dificultando, muitas vezes, as intimações e realizações de audiências no Fórum local. Com isso, a realização do depoimento especial, muitas vezes, exige soluções alternativas e criativas para sua implementação, o que vem gerando a necessidade de integração entre o Poder Judiciário e outros órgãos locais para o deslocamento às referidas comunidades para o cumprimento de diligências básicas”, ressaltou.
Por sua vez, a juíza da Comarca de Boa Vista (RR), Graciete Sotto Mayor Ribeiro, afirmou que normalmente só se tem conhecimento de que as partes envolvidas são indígenas na hora da audiência. “Temos uma quantidade de indígenas desaldeados muito grande. Temos aqui 11 etnias divididas em 32 áreas demarcadas, mas a maioria dessas etnias vive desaldeada na capital”, disse.
O povo romani (cigano), que será o foco da Comarca de Eunápolis (BA), também apresenta empecilhos para o levantamento de informações. Segundo juiz Otaviano Andrade de Souza Sobrinho, esses povos, por cultura, resistem a uma interação com autoridades. Também há uma situação conflituosa entre as próprias comunidades ciganas. “Só aqui em Eunápolis temos seis acampamentos e eles não interagem. Temos desafios a serem enfrentados na busca de dados, para que estabeleçamos relações que permitam a coleta das informações necessárias ao projeto, sem que sejamos invasivos. Para isso, será necessária a contribuição de pessoas de fora do Judiciário que já possuam um bom relacionamento interpessoal com os membros da comunidade.”
Na Comarca de Santo Amaro (BA), o juiz Gustavo Teles Veras Nunes afirmou que o maior desafio será de ordem material, “tanto físico quanto humano, especialmente quanto a este último, pela ausência de profissionais treinados na área”.
Apesar das dificuldades apresentadas, os participantes estão envolvidos e com boas expectativas em relação aos projetos-pilotos. Para a juíza Bárbara Marinho, da Comarca de Tabatinga (AM), o trabalho desenvolvido dá especial atenção às peculiaridades de cada comarca participante e busca a realização de um projeto que atende, de maneira específica, a realidade local. “De minha parte, são fortes as expectativas para garantir a implementação de um modelo de depoimento especial que atenda as diferenças culturais e linguísticas dos povos da região, em aperfeiçoamento ao trabalho que já vem sendo feito em Tabatinga, em parceria com os órgãos que cuidam da saúde indígena”, disse.
O juiz da Comarca de Cachoeira (BA), José Francisco de Almeida, também ressalta a necessidade do projeto-piloto. “O aperfeiçoamento minucioso da matéria trará, cada vez mais, resultados efetivos, reais e sem ofensa muitas vezes cometida por ignorância ou falta de inteiração com a vítima”. O magistrado explicou que o seu município fica no Recôncavo Baiano e que, além de marco histórico, é conhecido por sua atividade afro-religiosa, aspecto que deve ser respeitado nessa escuta. “É aproximadamente um terreiro de candomblé para cada mil habitantes”.
Além das comarcas mencionadas, participam do projeto as comarcas de Dourados (MS), de Amambaí (MS), de Mundo Novo (MS) e de Bonfim (RR).
Protocolo de atendimento
O objetivo do grupo de trabalho é a construção de protocolo de atendimento e realização de depoimento especial de crianças e adolescentes vítimas de violência, oriundas de povos e comunidades tradicionais, conforme previsto no art. 29 da Resolução CNJ 299/2019. “É um trabalho que começou no final de 2019, com a Resolução CNJ 299, constituindo-se posteriormente grupo de trabalho integrado por membros do Sistema de Justiça e especialistas no tema. Hoje, chegamos a um bom ponto de maturação do projeto que se volta à construção de manual que dê as linhas mestras à realização de depoimento especial, promovendo, enfim, o acolhimento das crianças e adolescentes pertencentes às populações tradicionais”, disse a juíza auxiliar da Presidência do CNJ Lívia Cristina Peres. Ela é integrante do Fórum Nacional da Infância e Juventude (Foninj) e do grupo de trabalho.
Lívia chamou a atenção para a importância de trabalhar com a estrutura que vai ser replicada em outros tribunais. “A ideia de se normatizar primeiro foi descartada. Pela delicadeza da temática, o caminho encontrado foi trabalhar na base, com o empírico, fazer os testes e, a partir disso, normatizar, verificando, inclusive, a questão da aplicabilidade”, explicou a magistrada.
Roteiro para implementação
A consultora Luciane Ouriques Ferreira, contratada por meio do PNUD, apresentou a metodologia empregada para o levantamento de informações que subsidiarão a elaboração do roteiro de implementação dos projetos-pilotos de depoimento especial.
“O questionário é uma etapa desse momento de aproximação das realidades da comarca. A partir da elaboração das respostas provenientes dos locais, vamos passar para a etapa de entrevistas com os magistrados e os entrevistadores forenses, os técnicos, os agentes de referência da rede protetiva, além dos líderes e representantes de movimentos sociais, para termos realmente um quadro da situação em que o roteiro será implementado”, informou.
Para ela, a não existência de dados é uma informação importante, porque aponta justamente para a invisibilidade desses povos frente às políticas públicas do Estado. “Essa informação é importante para direcionarmos alguns encaminhamentos sobre a importância de se reconhecer essas populações”, avaliou.
O depoimento especial visa preservar a integridade física e emocional das crianças que já passaram por uma violência e não podem ser revitimizadas pela Justiça. A medida atende às determinações previstas na Resolução CNJ 299/2019, que garante a crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas de violência, terem seus depoimentos colhidos em espaços adaptados e por pessoas com treinamento específico.
Carolina Lobo
Agência CNJ de Notícias