Julgamento com perspectiva de gênero: há 3 anos, protocolo embasa decisões da Justiça brasileira

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Foto: Luiz Silveira/Ag. CNJ
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Com base na desigualdade de gênero histórica no país, a Justiça brasileira assumiu uma postura para combater a discriminação e a violência sofrida pelas mulheres ao longo dos tempos. Publicado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e adotado por todo o Judiciário, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero completa três anos neste dia 19 de outubro, com resultados e ações que apontam um caminho de transformação da Justiça brasileira. 

Em abril de 2024, a juíza presidente do Tribunal do Júri Isabella Luiza Alonso Bittencourt, em julgamento de réu condenado por feminicídio em Goiás, destacou a contribuição do protocolo no julgamento de casos de crimes contra a mulher. A magistrada enfatizou que a orientação é de rechaçar “os estereótipos de gêneros, perpetuados pela sociedade patriarcal”.  

Na sentença condenatória, a magistrada reforçou que além da condição feminina e do crime ter sido praticado no âmbito familiar, “considera-se a condição de mulher negra, camponesa e integrante de movimento social, o qual, amiúde, é estigmatizado por diversos setores da sociedade”.  

A pena foi fixada em 18 anos de reclusão em sistema fechado, sem possiblidade de o feminicida recorrer em liberdade. A juíza destacou na decisão o fato de o réu ser o pai dos filhos da vítima e, mesmo consciente do sofrimento que causaria em seus descendentes, decidiu cometer o crime. 

“Temos um modelo a ser seguido. Avançamos e conseguimos aplicar o protocolo de norte a sul do país e internamente nas decisões do CNJ”, afirmou a conselheira Renata Gil, supervisora da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. De acordo com ela, a política é paradigmática, o protocolo evoluiu e seu uso está consolidado.  

Concebido em três partes, o Protocolo traz informações teóricas sobre questões de gênero; um guia para a magistratura, apontando o passo a passo processual; e traz ainda questões de gênero específicas dos ramos da Justiça, com destaque para os temas transversais. O Grupo de Trabalho (GT) que elaborou o documento, em 2021, era formado por representantes de todos os segmentos da Justiça, além da Academia.  

Até então, o Brasil não tinha um protocolo para colaborar com a implementação das políticas nacionais relativas ao enfrentamento à violência contra as mulheres e ao incentivo à participação feminina no Judiciário, como em outros países. “A própria Lei Maria da Penha já tratava da perspectiva de gênero, mas o protocolo trouxe um guia para que o julgamento de casos concretos fosse feito sob a lente de gênero, avançando nas políticas de equidade”, explicou a ex-conselheira do CNJ Ivana Farina, que coordenou o GT à época. 

Em dezembro de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) publicou a sentença que condenou o Brasil no caso do feminicídio de Márcia Barbosa de Souza, morta em 1998. Uma das exigências era que o país adotasse um protocolo de gênero para guiar os julgamentos. O documento aprovado pelo CNJ foi prontamente entregue à Corte IDH. “Nosso documento ampliava os marcos determinados pela Corte, pois não tratava apenas do julgamento de feminicídio, mas pode ser utilizado por todos os ramos de Justiça, em todas as esferas, desde o cível, previdenciário, trabalhista a militar e eleitoral”, lembrou Farina. 

Desigualdades estruturais

As dimensões estrutural, institucional e coletiva do racismo, sexismo e classismo no mundo do trabalho, por exemplo, foram citadas em acórdão do Tribunal Superior do Trabalho (TST), assinado pelo ministro Alberto Bastos Balazeiro, em junho de 2023. O caso da trágica morte de um menino de apenas 5 anos, filho de uma empregada doméstica, durante a pandemia de covid-19, expôs as “desigualdades estruturais e seus efeitos sobre os jurisdicionados e jurisdicionadas e, por conseguinte, na prestação jurisdicional”.  

Filho de trabalhadora doméstica e neto de outra, ambas com vínculo formal com a Prefeitura de Tamandaré (PE), mas que na verdade prestavam serviços domésticos na residência dos acusados, o garoto acompanhava a mãe naquele dia. O magistrado destacou que o fato deveria ser analisado a partir da adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, pois a medida “concretiza-se como um dos caminhos para a justiça social”.  

O relator do caso destacou que o patriarcado, o racismo e as demais opressões influenciam a atuação jurisdicional. Ao manter as penas impostas aos réus com pagamento de indenização às vítimas, Balazeiro alegou que “o documento elaborado pelo CNJ é importante instrumento por meio do qual se busca romper com a manutenção dos privilégios das estruturas dominantes, em detrimento de uma justiça substantiva”. 

Dando cumprimento aos tratados internacionais, normativas, política judiciária e a Constituição Federal, o protocolo também é mais um instrumento para que seja alcançada a igualdade de gênero, de forma a atender o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS 5) da Agenda 2030 da ONU. Para Ivana Farina, o Judiciário tem avançado nessas questões. “Esse é um trabalho coletivo, incluído na Política Judiciária e na Agenda 2030. A participação coletiva construiu uma ferramenta de transformação para uma Justiça igualitária e emancipatória, que não repita estereótipos e preconceitos”, pontua. 

Em outro caso, em agosto deste ano, a desembargadora federal Cibele Benevides Guedes da Fonseca, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), valeu-se do protocolo para possibilitar a manutenção de servidora que atua como professora e coordenadora em instituição federal de ensino na capital da Paraíba.  

Mesmo estando vinculada a outro campus, a trabalhadora reivindicava a permanência no local de trabalho. A alegação era de que a mudança, em vias de acontecer, impediria que ela acompanhasse as terapias do filho autista. Além disso, criaria “ambiente de instabilidade, estresse para toda a família, sobrecarga mental dos envolvidos e da sua saúde psicológica”. 

O pedido da docente havia sido negado pela 1.ª instância. A desembargadora, no entanto, concedeu solicitação, com base no protocolo, “haja vista que se trata de servidora pública, mulher e mãe, na busca do cuidado quanto a seu dependente, em especial se tratando de criança no espectro autista que exige tratativas diferenciadas”. 

Evolução normativa 

Aprovada pelo CNJ em 2022, a Recomendação n. 128 tratou da adoção do protocolo no âmbito do Poder Judiciário. Depois, a Resolução CNJ n. 429/2023 estabeleceu a obrigatoriedade das diretrizes da norma em âmbito nacional. Nesse sentido, os tribunais brasileiros passaram a levar em conta, em julgamentos, as especificidades das pessoas envolvidas, a fim de evitar preconceito e discriminação por gênero e outras características. 

O normativo também instituiu a obrigatoriedade de capacitação de magistrados e magistradas, em temas como direitos humanos, gênero, raça e etnia, em perspectiva interseccional. “O protocolo transborda o Judiciário. Várias instituições de outras esferas entram em contato conosco pedindo um treinamento, como é o caso da Justiça Desportiva e da Defensoria Pública, por exemplo”, destacou a conselheira Renata Gil. “Essa ação afirmativa nasceu no Judiciário e é usada por toda a sociedade. Ela consagra a igualdade constitucional e promove um mecanismo de mudança”, afirmou.  

Texto: Lenir Camimura e Margareth Lourenço
Edição: Thais Cieglinski
Agência CNJ de Notícias 

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