Julgamento com perspectiva de gênero começa a ser realidade na Justiça brasileira

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Foto: Gil Ferreira/CNJ
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O Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou, em fevereiro, uma guinada em direção à equidade de direitos entre homens e mulheres. A Recomendação CNJ n. 128/2022 orienta a magistratura a compreender a perspectiva de gênero para superar estereótipos e preconceitos em seus julgamentos. Espécie de guia, o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero vem sendo usado como fundamento e reflexão em diversos processos que tramitam nos vários ramos de Justiça.

A recomendação atende à determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), após ter condenado o Brasil por não investigar e julgar adequadamente crimes contra mulheres. “O momento atual é de potencializar a aplicação do Protocolo para dar efetivo cumprimento à decisão da Corte Interamericana e também para que as transformações necessárias para o rompimento com uma cultura de opressão, discriminação, patriarcalismo e machismo sejam operadas”, afirmou a procuradora de Justiça Ivana Farina Navarrete Pena, ex-conselheira do CNJ que coordenou o grupo que elaborou o Protocolo.

Segundo Ivana Farina, o documento tem sido cada vez mais utilizado pela magistratura estadual, do trabalho, federal e, até mesmo, em julgamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Neste mês, tendo por base o Protocolo, a 6ª turma do STJ aprovou a aplicação de medidas protetivas requeridas por uma mulher trans contra seu pai, estendendo a interpretação da Lei Maria da Penha.

“Gênero é questão cultural, social, significa interações entre homens e mulheres; enquanto sexo se refere às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino. Ou seja, conceito de sexo não define a identidade de gênero”, citou o relator do caso, ministro Rogério Schietti, em seu voto. “O objetivo da Lei Maria da Penha é punir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar em virtude do gênero e não por razão do sexo.”

Naturalização do preconceito

“Quando uma mulher grávida busca um trabalho, muitos apontam que esse é um ato de má fé. Nesse momento, percebemos o absurdo da naturalização da discriminação contra as mulheres no ambiente de trabalho”, conta a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT15), Patrícia Maeda.

Durante o webinário “A Importância da Perspectiva Interseccional de Gênero na Luta Antimachista”, promovido pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) no dia 19 de abril, Patrícia Maeda citou decisão que concedeu estabilidade à uma gestante em um contrato de experiência. “Não se trata nem apenas do direito da trabalhadora, mas de garantir proteção à criança. É um direito de dupla titularidade.”

A magistrada apontou que “o mercado de trabalho é pensado tendo como modelo o homem médio. Tudo o que se afasta disso tem certa dificuldade para ser encaixado. Ser gestante, ser mãe, é visto como diferente, inadequado no local de trabalho remunerado”. “Enxergar com as lentes de gênero muitas vezes é simplesmente ver o óbvio.”

Já a juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT8), Pará e Amapá Elinay Ferreira, trouxe como exemplo uma decisão favorável a uma trabalhadora que pedia redução da jornada de trabalho para cuidar de seu filho com deficiência. “Existem muitas decisões com perspectiva de gênero na Justiça do Trabalho, até porque as piores condições trabalhistas já se remontavam aos trabalhos das mulheres e das crianças desde a Revolução Industrial.”

Para a juíza Bárbara Lívio, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), é importante que o Protocolo seja conhecido por magistrados e magistradas para ampliar a equidade. “Por que temos de ter um olhar diferenciado para mulheres e, em especial, mulheres negras? Porque as lesões aos direitos atingem de forma muito mais corriqueira e sistemática essas cidadãs.”

Desigualdades estruturais

Há dois anos, a falta desse olhar quase impediu que uma segurada do INSS pudesse receber os benefícios previdenciários. Com um laudo de Mal de Alzheimer, doença que causa, entre muitos sintomas, perda de memória e incapacidade de executar funções comuns do dia a dia, a segurada dona de casa teve seu pedido de aposentadoria por invalidez negado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3). O argumento foi de que a doença comprometia apenas atividades laborais, o que não se encaixaria nas atividades praticadas pela segurada em casa.

O caso foi contado pela desembargadora do TRF3 Inês Virgínia como um exemplo em que a decisão tratou de maneira desigual o trabalho desempenhado entre homens e mulheres. “Assim como os demais segurados, donas de casa também têm necessidades de afastamentos temporários ou definitivos em decorrência da maternidade, acidentes ou enfermidades. Nesse caso, especificamente, não é razoável uma pessoa preparar alimentos, correndo risco real de incêndio, se uma panela for esquecida no fogo.”

Para Inês Virgínia, é preciso que todos os magistrados e magistradas façam cursos voltados para a perspectiva de gênero e conheçam o Protocolo para reconhecer as vulnerabilidades específicas que existem no país. “Se tem uma mulher no pólo de um processo – e se ela for arcar com o ônus -, analise se esse ônus é suportável, se é equilibrável. A igualdade é um direito constitucional e a perspectiva de gênero desloca nosso olhar para ajustá-lo.”

A Escola Nacional de Formação de Magistrados (Enfam) está finalizando um curso com base no Protocolo para ser disponibilizado às equipes do Judiciário. O conteúdo deverá ser oferecido em metodologia à distância.

Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias

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